quinta-feira, 27 de março de 2008


O amor é o único lugar do mundo onde se é. E digo isso mesmo quando duvido. Então, acenda uma vela e chore, meu bem. Frágil assim. É o que nos resta, sempre. A fragilidade, aquela. O resto é essa vida aqui fora: difícil e reta. Eu não sou outra a não ser aquela que preciso ser. Vagando feito gente sóbria. Eu, a ébria: veja quanta loucura tudo isso. Nunca pensei, nunca pensei.

Mas a vida era fácil, querido. Antes da guerra. Eram flores no vaso de prata da mesa de centro. Cartas de amor na varanda. Um vão, um vão. E todo o tempo do mundo pra curar meu vão. Hoje não tenho tempo. Sinto um calor enorme. A loucura tentando, tentando, mas eu sempre murmuro: "não". E, a cada "não", eu mato. Ela, eu, o tempo, a fúria.

Antes da guerra, querido. Não era preciso gastar tanto tempo pra manter os mantimentos, era possível sofrer alegremente os sofrimentos, acariciar as carícias e inventar novidades. Antes da fome, querido, a vida era um paraíso e não havia vergonha. Antes da morte, querido, Deus dançava ao nosso lado umas danças de criança. Mas tudo isso era antes, bem antes. Havia uma dor que se curtia, um amor que se gritava, um tudo sem nome algum. Antes, bem antes, meu bem...

Quanta falta de nós todos.

Rebeca

domingo, 23 de março de 2008

A ambulância está parada à porta. Foi então que recebi o beijo gélido e em meu coração senti escorrer sangue de solidão. Tem piedade de mim, também perdi um amor para a guerra.

Recebi sua carta agora a pouco. Segurei-a firme como quem encontra algo que há muito tempo procurava, passei-a pelo nariz para captar o que ainda restava de seu perfume. Mas ainda não li – resisti bravamente. Quero antes escrever-te e só então vou lê-la, como recompensa a esta dívida que tenho.

Um grito de solidão ecoou na minha rua hoje. Senti que algo morria – e que junto, algo também morria em mim. Mas voltei a dormir, era tarde da noite e eu sempre tive o desejo de morrer dormindo. Quando acordei pela manhã – antes da hora como de costume, achei um telegrama sobre as trouxas da lavanderia na porta da frente. Nele constava: NOSSOS PESARES. DEPARTAMENTO DA GUERRA.

Gélido.

Só o que consegui fazer foi acender um cigarro [e aí então é que pensei – acho que é por isso que minha mãe fuma tanto]. Senti o meu ventre de papel postiço murchar. Tenho 10 segundos agora se quiser viver.

Não gosto de escrever sabendo que tenho um público. Quero aprender com você a ser “sempre-viva” que se sustenta em vaso a despeito dos voyeurs.

Foi então que vi meu corpo ir ao chão: Sainte Thérèse de l’Enfant Jésus, ne m’abandone pas, faire moi ressuscité.

Pois é a mim que escrevo: ecos da solidão. Repito sozinha aquilo que andei contando pra mim. Se peço ajuda a você, entendo logo que não pode estar em meu corpo. Perdoe-me, é raiva. Ira. Ódio. Convulsão. Mas tudo em mim é plácido. Tenho cara de domingo. Porque o amor é incerto e a amizade não sobrevive às convicções. Convicções dizem sim e não e ponto final e depois se calam. Bom seria se não fosse bem assim. Cansei. Cansei e rezo pra reaprender a rezar: quero uma antiga convicção que nunca foi convicta. Como quando eu me perguntava se Deus existia e, só de duvidar, já sentia culpa. Pode também ser um pouco de ressentimento. Refiro-me a isso que sinto: pode ser ressentimento. Mágoa ao quadrado. Silêncio profundo. Flores murchando absurdas. Digo: nada. Tem som de leite batido. Bate que bate que bate que bate. Pedi tantas vezes pra ser de verdade, mas minha verdade acontece entre paredes, muro, concreto e asfalto. Verdade não é só verdejante, cheiro de mato e brisa do mar. Verdade é asfalto, parede pintada, boneca de plástico, computador na sala. Brincar em segredo. Fazer promessas. Pedir que o diabo não me carregue. E, mesmo assim, não mais crer nem em diabo, nem em Deus, nem em anjos. Digo palavras difíceis. Ninguém entende. Então me calo. E tento ser de verdade. Rir de verdade. Repetir clichês: "pois o importante na vida é sobreviver às mudanças." Contar que eu morri é exagero. Ainda há um tudo que respira em mim. Um medo fumegante. Sou toda mulher. Mesmo que meu espelho me destroce toda.

Rebeca

segunda-feira, 10 de março de 2008

Meus caros,

Tenho pra mim que preciso disso. Dessa coisa de inventar. Ela e ele num desencontro - porque de encontros não é preciso falar. A felicidade e o amor são silenciosos. Portanto, quando mais insisto em dizer, mais eu me traio: confesso sem querer que o amor repousa e que a felicidade me faz apenas umas esporádicas visitas.

Ela e ele num desencontro. Faço agora a cena. Foi uma noite qualquer, a bebida na mesa. Ela se vestia de encantos pra nada. Ele buscava nela um tudo. Pois que elas, elas encantam pra nada. Não havia razão, apenas era eloqüente, bela e sexy. Inteligente, viva e forte. E ele, pasmo. Mesmo depois da bebida, da dança e da fantasia, ainda assim pasmo. Porque quando morria nela a eloqüência, ele apressava-se em fazer-se dela a voz. E quando nela falhavam os encantos, ele era um tímido boquiaberto e a inventava mulher.

Se rendeu? Digo que não. Ela cresceu em glória e nem notou seu benfeitor. Esparramou-se num sexo úmido e quente que ele mal sabia conduzir. Amou o nada do espelho e correu ávida por ser amada na carne. Coisa que ele, aliás, mal sabia fazer. Amava-lhe a alma, os dentes, a íris. Num infinito e dolorido amor infante. E ela buscava o mau amor dos homens. Desses de esparramar no tapete e ter medo do fim.

Não sei, é claro, dizer se posso amaldiçoá-la de fato. Por vezes me vem essa vontade. Outras horas, porém, entendo o desencanto: é que a pureza não constrói caminhos. Sujando-se, ela faz um amor bonito e espera aflita o dia da aliança. Mas está tudo manchado. O amor é raro.

Pois sim, é raro. Digo a vocês e não dou esperança. Não sou de brincar com coisa viva.

Dura e ocamente,

Rebeca

domingo, 9 de março de 2008

Durante o tempo que silenciei sob teu cabelo molhado, queria mesmo era ter dito do quanto você me escorregava por entre os dedos. Até então, digo, até começar esse amor de nós, nunca eu tinha havido de lidar com gente tão arredia.
Entenda,
se não sou de insistir no que não me prende,
se não insisto no que não posso prender,
se não sei insistir em corpo ausente,
como é que pode eu e você?

Mas a gente tem mesmo essa mania
de criar aquilo que não deve ser.
Porque me és assim, tão arredia
porque te sou assim, tão na minha
sabes disso,
poderia ser um vazio nosso anoitecer.

Mas não. Contigo nunca haverá de ser.

É que cheiras a ti tua nuca,
entende o que isso significa?
Enquanto preparas tua fuga
é isso em mim que estica
a vontade de estar ao seu lado
em silêncio,
sós,
eu,
você,
teu cabelo molhado.