quarta-feira, 6 de agosto de 2008

carta divã

A cabeça. A sentença. E então a morte. Eu ouço quando falam da morte e não acredito. É como se contassem sobre fadas cintilantes. É como se ficassem a cada dia um pouquinho mutilados e então inventassem pequenas lendas pra explicar que fim leva nosso corpo. Sou limpa, limpa, e moro numa casa limpa e ando em ruas limpas e sou toda inteirinha vestida de branco do pescoço aos pés. Mas minha cabecinha suja só me faz pensar em uma orgia de mutilados e em loucos cantando indecências rua afora. Minha cabecinha inventa um lamaçal de alegria e sugere que a beleza jamais seja tanta que não precise ser consertada, nem a feiúra seja um excesso que precise ser urgentemente descartado. Eu quero que tudo caiba. Na palma da minha mão. Nos riscos do meu destino. No desalinhar do meu caminho. Este caminho torto que eu quero consertar sempre. Pelo simples prazer de ser boa. Pela graça da descoberta. Pela ânsia de mostrar que sou mais do que um corpo pensante, humano, pulsante, que tenho mais do que aquela inteligência básica que me permite reconhecer cores e usar talheres. Eu quero a genialidade dos deuses, o poder dos trovões, a força da maior das ciências - ainda desconhecida. Quero ser acima da mulher, do homem e dos sexos todos. Daí que hoje, acariciando a morte e celebrando a vida, meu nome é inveja, desejo e glória. Hoje. Enquanto me esqueço, por uma brevidade, que sou tão-somente um bichinho, uma coisinha, uma alguém-aqui-apreciando-o-instante.

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