terça-feira, 14 de outubro de 2008

Aí mesmo, aí onde você está. Eu vejo seu risco louco, seu traço lindo, seu sonho-macho. Acredito em sua dor e em seu poder e digo: "Deus!", e você me cura. Aí mesmo onde você está, preso fora das grades, pedindo para entrar. Eu peço: "Não entre!" Que ao deus é exigido que fique fora. À loucura, que evite a tentação e seja dor. Mas eu tento. E de tentar eu me misturo a você, eu peco ao ser um pouco deus, e um deus errado. Não entre, amigo. Você, que é subversão do meu corpo, você que é torto, você que não exala as mesmas melodias douradas que eu aprendi a soprar, você que é vida, vida, vida. Você arde defumadamente insano. Estala o coração em abandono. Pede colo em palhaçada errante. Você palhaço, louco, santo. Em sua pele escura extensa viva, em sua história longa forte hoje, em seu olhar denúncia peso fúria. Você homem-mulher a abocanhar serpentes. Viril mordendo flores no sobrado. Pedindo meu amor lá na sacada. Me peça mais um pouco de segredo. Que eu seja mais um tanto sua santa. Me ensine a amar errado toda torta. Porque a vida certa não distrai. E eu finjo.

domingo, 5 de outubro de 2008

Desce, Bianca, desce
Afunda teu pé na lama
Beija a terra que te ama
Salta as pocinhas, Bianca
Brinca de chuva na relva
Brinca de relva nos sonhos

Sê jovem, Bianca, e brinca
Sê moleque de um pé só
Pula as estradas, Bianca
Amarra a saia da avó
Ri um riso bem feio
Escancarando alegria

Queima o chão
Risca a fazenda
Canta a beleza, Bianca
Canta o amor que não tem nome
E grita os nomes de deus
Molha os cabelos na chuva
A chuva que te destrói

Sê pedacinhos, Bianca
Porque ser inteira dói.

domingo, 21 de setembro de 2008

Amores, busco força.

Força. Força. Força. O que me abre é nada, queridos. Vejo-me aqui num vazio de sentido - esse vazio jovem e tolo, esse vazio que seria belo se os tempos fossem outros e o mundo não me exigisse uma resposta rápida: uma direção clara. É claro! Cristalinamente adulta. Confiável. Fiando-me na contagem de pontos que enquadram o certo no lugar do certo e o errado no lugar do errado. O resto vai para o limbo. O limbo das crianças. Nem céu, nem inferno. Cristalinamente adulta, devo agora escolher: lá ou cá? É turvo, é turvo. É um túnel infinito sem luz ou estrela. É minha pele estendida, cheia de poros. Minha pele arrepia amor. Amor que é turvo em dor. Melado em saliva. Doente, vivo, forte. Eu nasço às vezes, nas pontas dos meus dedos. Sou toda carícias. Água turva e feita de mel e ferrão. Abelha rainha matando tempo.


O limbo das crianças sem fé. Não tenho ídolos além de papai: ainda assim, prefiro ser edípica a ser besta. A berrar feito tiete diante de um poeta morto. Fio-me na contagem de pontos porque devo. Tenho quase pontos suficientes para subir um degrau, e mais outro. Peço delicadamente o amor dos acadêmicos: sou dona das palavras fáceis, por que não dominaria as difíceis? Domino. Domino porque sou agora dominada. Submissa. Só deus sabe. Só deus sabe o quanto é turvo mas também o quanto é necessário. Ou: quem é que vive se alimentando de sonhos? Da fé na boa família e na felicidade? Eu como e bebo um pouco do veneno diário que me faz subir aos céus e sentar à direita do deus poderoso que dita as regras do momento. Digo palavras confiáveis para gozar de um poderzinho de nada. Mas quero mesmo é casa, comida e todas as minhas lembranças guardadas numa caixa. Àqueles que com discursos falseiam o amor eu atiro pérolas, como aos porcos. Há muita majestade no mundo e é de fingir servir que a gente morre um pouco a cada dia. É de servir de verdade que a gente já morreu e não sabe.

Eu nado no limbo, queridos. E não há veneno algum num lugar tão longe do céu.

domingo, 17 de agosto de 2008

tontice
vive-se à maneira formidável contra humana pq morre-se de humanidade
humano é oposto de arte
exige boa saúde diagramaticamente imprópria
arte
se não mata ou engorda
adoece
cozinha à brandura duma febre
tolice...
vou drenar abscessos
volto depois.
O mundo é um aceno. Um aceno distante. Está bem ali, queridos. Fazendo formas mil. Inventando o jeito como a gente deve ser. Eu não me queixo. Sem uma coisa inventada a priori, eu jamais teria o que dizer. Nem palavras para tal. A borda do mundo me segura. As paredes do navio me prendem nesse balanço infinito e morno que me enche de vontade de seguir em frente. Rumo a. Àquele aceno distante. Logo ali, queridos.

Eu não me queixo. Preciso de um deus forte que me segure por um tal fio delicado que me mantém de pé. Meu deus dono e senhor puxa o fiozinho e então às vezes eu ergo a cabeça. Olho pra frente. Deixo descer uma lágrima que segue o caminho longo entre olho e seio esquerdo, seio esquerdo e umbigo. E depois some. E então minhas mãos são concretas. Fazem coisas concretas. Escrevem palavras e carregam coisas importantes. Trocam dinheiro. Dão e recebem. Entram em contato com a matéria e me fazem notar que tenho um corpo. E então minhas mãos são de fada. Acariciam bem. Devagarzinho. Num delicado milagre. Que quase ninguém percebe.

E então a vida é concreta. Não acena logo ali. Está aqui. Pouca, miúda, quase um nada. Mas vida. Em uma plenitude misteriosa que a gente raramente vê. Na maior parte do tempo a gente acha que ela acena. Logo ali, junto com o mundo. Aquele aceno vazio...


Com amor e em vida,

Rebeca

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

carta divã

A cabeça. A sentença. E então a morte. Eu ouço quando falam da morte e não acredito. É como se contassem sobre fadas cintilantes. É como se ficassem a cada dia um pouquinho mutilados e então inventassem pequenas lendas pra explicar que fim leva nosso corpo. Sou limpa, limpa, e moro numa casa limpa e ando em ruas limpas e sou toda inteirinha vestida de branco do pescoço aos pés. Mas minha cabecinha suja só me faz pensar em uma orgia de mutilados e em loucos cantando indecências rua afora. Minha cabecinha inventa um lamaçal de alegria e sugere que a beleza jamais seja tanta que não precise ser consertada, nem a feiúra seja um excesso que precise ser urgentemente descartado. Eu quero que tudo caiba. Na palma da minha mão. Nos riscos do meu destino. No desalinhar do meu caminho. Este caminho torto que eu quero consertar sempre. Pelo simples prazer de ser boa. Pela graça da descoberta. Pela ânsia de mostrar que sou mais do que um corpo pensante, humano, pulsante, que tenho mais do que aquela inteligência básica que me permite reconhecer cores e usar talheres. Eu quero a genialidade dos deuses, o poder dos trovões, a força da maior das ciências - ainda desconhecida. Quero ser acima da mulher, do homem e dos sexos todos. Daí que hoje, acariciando a morte e celebrando a vida, meu nome é inveja, desejo e glória. Hoje. Enquanto me esqueço, por uma brevidade, que sou tão-somente um bichinho, uma coisinha, uma alguém-aqui-apreciando-o-instante.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

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Ah não! Juro que tentei reclusa, em prece pedi para que ninguém fizesse barulho algum, que casa alguma fosse ocupada, sem luzes acesas, sem visita. Mas foi trazida até aqui e vi o ainda pulso em vida e quis gritar para que calassem!

Ah todo esse tempo e distância! Essa mudez fez com que eu entrasse em contato com coisas, meus queridos. Coisas essas que, de fato, não conceberiam que eu as tivesse conhecido isenta de goles ébrios.

Mas assim foi.

Descobri que dentro de mim há legiões angelicais e demoníacas. Os dois grupos juntam-se formando um grande Deus e um grande Demônio. E eles convivem aqui dentro, bem grandes e se alastrando por meus poros.

Nada disso me choca. Meu medo é não saber até onde podem eles alcançar.

E se meu excesso de Deus aflorar? Rasgar-me-ei de uma bondade a qual não quero. Deixar-me-ei livre de todos os caprichos e encantos que me decoram, terei de olhar-me feia ao espelho porque cultuarei uma beleza que de dentro pequenina transitará para o fora. Não quero! Não quero não me deliciar com os abusos, as cores, os cheiros e os prazeres. Não quero esperar complacente a diretriz de um mundo sem que eu possa girá-lo. Não!

Não quero me distanciar do que me faz humana e por isso peco deliciosamente. Mas se eu dele me desfizer? Se tirar todo esse Deus do dentro?

Só o Demônio, então. Até onde eu iria? Ah, cuspiria sem escrúpulos nas caras sujas dos que me sangram. Diria todas as verdades com palavras duras e nada rebuscadas até que visse escorrerem lágrimas de sangue em todos os outros que a mim olharam de maneira atravessada. Atropelaria todos que cruzassem meu caminho. Contaria os segredos alheios que guardo justamente para quem nunca os poderia saber. Acabaria com vidas e riria em gozo. Desmentiria todas as juras que são criadas para uma boa convivência. Não! Não posso assim ser!

Não quero me distanciar do que me faz humana e por isso não poderia ser assim tão cruel! Em meu peito dói um coração ao entrar em contato com as maldades do meu Demônio particular e não posso deixá-lo tomar conta de minhas cavidades todas e fazer de mim um inferno.

E agora que sei que assim sou? Sensível e incapaz de nortear até onde vai minha bondade e maldade tenho evitado quaisquer excessos.

Amar, sorrir, acolher, comer, beber, dançar, odiar, prazer, escrever, falar. Cada um desses pode me levar a uma bondade e/ou maldade desqualificadora de mim.

Só que sem esses excessos me perdi. Deformada estou por isso tranquei todas as portas e janelas, mas vi pela fresta a luz que vocês acenderam e já não sei se lhes agradeço ou mato...

Um sinal de quem não é mais Julieta.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

A casa está vazia, queridos. Mas nem por isso eu sofro. A verdade é que estou feliz. Incoerentemente feliz. Todos os meus filhos me trouxeram hoje flores e bombons. Todos os meus filhos do mundo vieram e fizeram uma festa em minha casa. No quintal mal-varrido. Na minha angústia perdida. Eu vi, eu vi. Eu vi e eu sei que vocês não acreditarão. Dirão logo que meu ventre estéril não poderia fazer sequer um zigoto. Menos ainda abrir o mundo para uma imensidão de meninos de infinitas cores fazendo um baile no jardim de casa. Uma casa que também nunca existiu. Sei das minhas trancas, queridos. Olhei janela afora e vi apenas um muro amarelado. Coisa clichê. Clichê de gente presa. Não gosto. Prefiro minha fantasia. De corpo volumoso sem medo de dar à luz. Sem medo de ser. Queridos, queridos. Não há muro ali. Meu ventre é verde e aguado. E as flores não páram de crescer. Eu vi uma ninfa no meio do mato. Rolava na relva. Coisa mitológica, não sei bem explicar. Por não saber explicar, perco o sentido. Digo coisa qualquer. Mas eu juro que é muita coisa. Tudo o que eu digo hoje, queridos, é muita coisa. É muita coisa porque a casa está vazia e mesmo assim eu não sofro. Mesmo assim eu me sinto bem. Mesmo assim eu olho por essa janela do muro e sei que há um caminho em frente. Mesmo assim, queridos. Mesmo assim.

domingo, 13 de abril de 2008

Escrevo inflamada. Vista embaçada. Veias duras. Mel roendo os dentes. Dentes melando mel. Escrevo inflamada. Hoje mesmo a verdade me bateu à porta sutilmente: pediu-me que eu atentasse para o prejuízo. Porque é prejuízo viver assim sem juízo, aluada como manda meu coração. Aluada feito lua nova, feito ninfa do mato, feito menina antiga. A cabeça quase cai, guilhotinada como um bom castigo para uma alma em chamas. Chamas de um inferno lindo, azul e vivo.

Meus pulsos apertam. Apertados na corrente que me pus. Por proteção e amor. Agora sim eu escrevo de verdade que nem gente adulta. Não mais inflamada. Não mais louca. Nem mesmo olhando pra lua num desatino suave. Não. No centro. Pulsos apertados, olhar reto, o agora: o agora é assim, suave e manso. Ouço com delicadeza os sons do mundo: cantam morte num riso gostoso. Bradam poder fingindo amor. Mas eu volto. Ao centro. O centro é aqui, onde são ditas coisas certas. Direitas. Moça direita. Mulher inteira. Andando erguida, firme, mas por favor, que sejam femininos os passos. Assim, delicados. Firmes, delicados, gentis. Bom dia, boa noite, muito obrigada e até amanhã. Perdoe-me qualquer coisa, às vezes sou desastrada. Erro a linha da estrada. Mas eu volto, eu volto pra linha bem depressa. Tenho pressa. Não, não, a inflamação era uma doencinha besta que já tratei de curar. Pedi umas pílulas. Remedinho bobo, barato, coisa pouca. Isso. Sou saudável. Feliz. Contento-me com a beleza do raiar do dia por trás das grades da janela. Nunca um pensamento mau. Nunca a inveja. Nunca o ódio. Sou flor de laranjeira, borboleta azul, Estrela Dalva. Alva.

Amanhã eu acordo sem centro. Feliz na falta de centro. Lá e cá, cá e lá, boa e má. Um monstro com alma de anjo, demônio que faz caridade. Amor em chamas. Coisinha simples, incabível. Gosto desses pequenos instantes adolescentes que me tornam mais crescidinha na manhã seguinte. Ilusões de amanhecer.


Rebeca

domingo, 6 de abril de 2008

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Queridos,
Não peço desculpas pela minha ausência, acho que já desculpei a mim por ter ficado tão longe de meu próprio campo de visão.
Às vezes é preciso.
Antes pensava que isso era falta de amor, mas depois de tantos tijolos transpostos me atentei para o fato de que nada pode não ser amor.
Não! Não me faço mais Julieta para estranha afirmação. Não é com doce e receptivo útero que lhes proponho tamanha abstração.
Serei mais clara.
Quando num dia assim feito hoje, ontem e o que será amanhã caminhava por paredes de um Império estremecido, ouvia uma voz pueril a me torturar, sempre a puxar a barra de meu vestido longo e pesado. E eu queria apenas subir, subir até o teto.
Depois de cada passo tornar-se uma tonelada de culpa por não olhar para baixo, parei. Ouvi. Não fui mais puxada. Só queria saber tal voz, se eu já havia amado. Ah que vontade de dizer que não sabia nem do que se tratava. Que afronta!
Ódio, decepção, indignação. Onde amor, meu Deus?
Sorte a minha ter calado. Pensei, então que se não tivesse amado não teria exercitado ódio, decepção, indignação. Nenhuma dor. Seria pura e simplesmente indiferença.
Então amei. Não só quando dizia a ouvidos outros segredos, mas também quando devolvia os livros que não eram mais meus e ainda ocupavam espaço na estante. Não é mais o sentir das páginas de diário de uma donzela. Não é.
É aquilo que existe mesmo amassado, mesmo gritado. É não e sim, é mais o nada que o tudo. É o simples fato de escolher se a rua direita ou esquerda (o que convenhamos não é tão simples assim).
Só assim chego ao teto e desço ao chão, passeio por quinas e danço no ar.
E quem sabe, só assim poderei não mais falar de amor.
Com simplicidade de palavras,
Julieta.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Départir le partir

Mas eu cansei; a gente cansa dessa história toda de partir sempre e não fazer raízes em lugar algum. Não se brota sem raízes, meu amor, e eu, bem, eu devo ter algo escondido que pode brotar se eu passar um tempo em terras férteis, não? Todo mundo tem, eu sei disso porque há o que floresça mesmo em terrenos secos, áridos, espinhosos e brutos. Mas é que é preciso insistência. Não, teimosia não. Não é disso que digo. O teimoso não sabe escolher - ele insiste em tudo, e se algo dá certo não é nunca por algum investimento decorrente da percepção daquilo que lhe aparece como promissor, mas sempre por sorte. Não posso negar, por outro lado, que o teimoso seja um insistente, mas, veja bem, não era este o meu ponto. Deixa-me reaver contigo. É que o tempo passou e agora nessa idade em que me encontro não dá pra ficar mais à mercê da sorte. Teimosia só é coisa de criança porque criança tem tempo pra teimar. Mas agora eu preciso insistir, e não só insistir, mas insistir onde eu não possa não acertar. A permanência, e é aí onde eu queria chegar, a permanência, meu amor, é um requisito mais do que necessário, se é que assim posso dizer, para a insistência. Mas se não me pedes que fique, se não me pedes permanência, eu lhe devo exigir que vá. Agora é a sua vez – parta.
Parta. Agora que chove podes partir. Pega tuas roupas, amontoa esses amassos dentro de tua bolsa e siga como que para atravessar o arco-íris. Anda sem fim, faz tuas curvas; se decidires voltar, contorna meu corpo como objeto perdido do desejo e toma outra direção. Porque esse encontro, esse nosso encontro, já é antigo e, mais do que isso, o mesmo. Quando se deixa de sentir que pode ser diferente é que acabou. Tentar voltar é como, bem, tentar voltar é como colar um vaso de porcelana que caiu no chão e se quebrou. Uma parte não junta mais com a outra, entende o que lhe digo? Fica sempre o remendo, remoendo.

quinta-feira, 27 de março de 2008


O amor é o único lugar do mundo onde se é. E digo isso mesmo quando duvido. Então, acenda uma vela e chore, meu bem. Frágil assim. É o que nos resta, sempre. A fragilidade, aquela. O resto é essa vida aqui fora: difícil e reta. Eu não sou outra a não ser aquela que preciso ser. Vagando feito gente sóbria. Eu, a ébria: veja quanta loucura tudo isso. Nunca pensei, nunca pensei.

Mas a vida era fácil, querido. Antes da guerra. Eram flores no vaso de prata da mesa de centro. Cartas de amor na varanda. Um vão, um vão. E todo o tempo do mundo pra curar meu vão. Hoje não tenho tempo. Sinto um calor enorme. A loucura tentando, tentando, mas eu sempre murmuro: "não". E, a cada "não", eu mato. Ela, eu, o tempo, a fúria.

Antes da guerra, querido. Não era preciso gastar tanto tempo pra manter os mantimentos, era possível sofrer alegremente os sofrimentos, acariciar as carícias e inventar novidades. Antes da fome, querido, a vida era um paraíso e não havia vergonha. Antes da morte, querido, Deus dançava ao nosso lado umas danças de criança. Mas tudo isso era antes, bem antes. Havia uma dor que se curtia, um amor que se gritava, um tudo sem nome algum. Antes, bem antes, meu bem...

Quanta falta de nós todos.

Rebeca

domingo, 23 de março de 2008

A ambulância está parada à porta. Foi então que recebi o beijo gélido e em meu coração senti escorrer sangue de solidão. Tem piedade de mim, também perdi um amor para a guerra.

Recebi sua carta agora a pouco. Segurei-a firme como quem encontra algo que há muito tempo procurava, passei-a pelo nariz para captar o que ainda restava de seu perfume. Mas ainda não li – resisti bravamente. Quero antes escrever-te e só então vou lê-la, como recompensa a esta dívida que tenho.

Um grito de solidão ecoou na minha rua hoje. Senti que algo morria – e que junto, algo também morria em mim. Mas voltei a dormir, era tarde da noite e eu sempre tive o desejo de morrer dormindo. Quando acordei pela manhã – antes da hora como de costume, achei um telegrama sobre as trouxas da lavanderia na porta da frente. Nele constava: NOSSOS PESARES. DEPARTAMENTO DA GUERRA.

Gélido.

Só o que consegui fazer foi acender um cigarro [e aí então é que pensei – acho que é por isso que minha mãe fuma tanto]. Senti o meu ventre de papel postiço murchar. Tenho 10 segundos agora se quiser viver.

Não gosto de escrever sabendo que tenho um público. Quero aprender com você a ser “sempre-viva” que se sustenta em vaso a despeito dos voyeurs.

Foi então que vi meu corpo ir ao chão: Sainte Thérèse de l’Enfant Jésus, ne m’abandone pas, faire moi ressuscité.

Pois é a mim que escrevo: ecos da solidão. Repito sozinha aquilo que andei contando pra mim. Se peço ajuda a você, entendo logo que não pode estar em meu corpo. Perdoe-me, é raiva. Ira. Ódio. Convulsão. Mas tudo em mim é plácido. Tenho cara de domingo. Porque o amor é incerto e a amizade não sobrevive às convicções. Convicções dizem sim e não e ponto final e depois se calam. Bom seria se não fosse bem assim. Cansei. Cansei e rezo pra reaprender a rezar: quero uma antiga convicção que nunca foi convicta. Como quando eu me perguntava se Deus existia e, só de duvidar, já sentia culpa. Pode também ser um pouco de ressentimento. Refiro-me a isso que sinto: pode ser ressentimento. Mágoa ao quadrado. Silêncio profundo. Flores murchando absurdas. Digo: nada. Tem som de leite batido. Bate que bate que bate que bate. Pedi tantas vezes pra ser de verdade, mas minha verdade acontece entre paredes, muro, concreto e asfalto. Verdade não é só verdejante, cheiro de mato e brisa do mar. Verdade é asfalto, parede pintada, boneca de plástico, computador na sala. Brincar em segredo. Fazer promessas. Pedir que o diabo não me carregue. E, mesmo assim, não mais crer nem em diabo, nem em Deus, nem em anjos. Digo palavras difíceis. Ninguém entende. Então me calo. E tento ser de verdade. Rir de verdade. Repetir clichês: "pois o importante na vida é sobreviver às mudanças." Contar que eu morri é exagero. Ainda há um tudo que respira em mim. Um medo fumegante. Sou toda mulher. Mesmo que meu espelho me destroce toda.

Rebeca

segunda-feira, 10 de março de 2008

Meus caros,

Tenho pra mim que preciso disso. Dessa coisa de inventar. Ela e ele num desencontro - porque de encontros não é preciso falar. A felicidade e o amor são silenciosos. Portanto, quando mais insisto em dizer, mais eu me traio: confesso sem querer que o amor repousa e que a felicidade me faz apenas umas esporádicas visitas.

Ela e ele num desencontro. Faço agora a cena. Foi uma noite qualquer, a bebida na mesa. Ela se vestia de encantos pra nada. Ele buscava nela um tudo. Pois que elas, elas encantam pra nada. Não havia razão, apenas era eloqüente, bela e sexy. Inteligente, viva e forte. E ele, pasmo. Mesmo depois da bebida, da dança e da fantasia, ainda assim pasmo. Porque quando morria nela a eloqüência, ele apressava-se em fazer-se dela a voz. E quando nela falhavam os encantos, ele era um tímido boquiaberto e a inventava mulher.

Se rendeu? Digo que não. Ela cresceu em glória e nem notou seu benfeitor. Esparramou-se num sexo úmido e quente que ele mal sabia conduzir. Amou o nada do espelho e correu ávida por ser amada na carne. Coisa que ele, aliás, mal sabia fazer. Amava-lhe a alma, os dentes, a íris. Num infinito e dolorido amor infante. E ela buscava o mau amor dos homens. Desses de esparramar no tapete e ter medo do fim.

Não sei, é claro, dizer se posso amaldiçoá-la de fato. Por vezes me vem essa vontade. Outras horas, porém, entendo o desencanto: é que a pureza não constrói caminhos. Sujando-se, ela faz um amor bonito e espera aflita o dia da aliança. Mas está tudo manchado. O amor é raro.

Pois sim, é raro. Digo a vocês e não dou esperança. Não sou de brincar com coisa viva.

Dura e ocamente,

Rebeca

domingo, 9 de março de 2008

Durante o tempo que silenciei sob teu cabelo molhado, queria mesmo era ter dito do quanto você me escorregava por entre os dedos. Até então, digo, até começar esse amor de nós, nunca eu tinha havido de lidar com gente tão arredia.
Entenda,
se não sou de insistir no que não me prende,
se não insisto no que não posso prender,
se não sei insistir em corpo ausente,
como é que pode eu e você?

Mas a gente tem mesmo essa mania
de criar aquilo que não deve ser.
Porque me és assim, tão arredia
porque te sou assim, tão na minha
sabes disso,
poderia ser um vazio nosso anoitecer.

Mas não. Contigo nunca haverá de ser.

É que cheiras a ti tua nuca,
entende o que isso significa?
Enquanto preparas tua fuga
é isso em mim que estica
a vontade de estar ao seu lado
em silêncio,
sós,
eu,
você,
teu cabelo molhado.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008



É silêncio ainda. Só que agora é silêncio de saudade. Saudade de mim. Dê-me um tempo. Um tempo entre eu e eu. Ela e eu. Eu e ela. Nós duas. Pois vou explicar agora porque não sei ser artista: é que tenho tanto medo de me perder, que acabo evitando sair de mim. Então, evito o moleque das pipas que avança ligeiro na sola do meu pé esquerdo, finjo não enxergar a puta que sacode minhas ancas e escondo nos pulmões o grito de princesa mimada. Se eu fosse despedaçada e forte, sem medo de me perder, confessaria absurdos como a vontade louca de criar todas as leis do mundo e de ser amada por todos os Reis do mundo. Nasci mulher, querido, e, por medo de um dia passar debaixo do arco-íris e me tornar menino, decidi ser menina até a raiz dos cabelos: frágil e delicada tal e qual asa de borboleta. É que não quero que Deus -notando algum vigor em mim - resolva me arrancar os encantos de pele e curvas. E meu gozo fundo e infinito. Pela mesma razão, não sou sábia: quero jamais ter rugas.

Mas isso, meu caro Dorian, é um drama antigo e não é meu. Pergunte às feministas, às fêmeas, às damas. Nada de novo sob o sol. Sou aquilo que às mulheres foi dado pela história: uma dúvida, um quase, um fundo. Um depois. Travo pequenas guerras. Nada artísticas. Socos no ar. Não fazem encantos, graça ou sentido. Já lhe disse que não sou artista nem sei ser. Artista inventa beleza no torto. E eu quero ser bela e reta: quero seguir o que não falha. Quero ser terrivelmente bela. Quero não ter manchas, marcas, máculas. Quero nunca ser traída, jamais trair, furtar ou matar. Desejo manchar o lençol de vermelho na noite de núpcias e quero cuidar dos doentes. Não sou artista, Dorian. Fui parida num sonho feminino e desde então minha mãe e amante exige que eu seja o que seus instantes pedem. Hoje o instante dela é duro. Caminha feito dama sobre os ponteiros do relógio. E não permite que eu seja moleque, puta ou bicho. "Somos o que somos" - ela diz, e o instante completa, submisso: "E não há o que se possa fazer."

Minha mãe e amante adoeceu. Amanhã acordarei e ela estará tirando poeira do vidro da mesa de centro da sala. E eu acho lindo. Eu acho o tédio sempre, sempre lindo, Dorian. Não sinta pena: não sei ser artista porque amo ser escrava. E hoje ela exige de mim o silêncio, o frio e uma vassoura que alcance as teias de aranha no teto.

Aranha faz um trabalho tão perfeito, não? Deve ter mãos de fada... Ou coração de escrava...

Com carinho,

Sua e de quem quiser,

Rebeca

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Pensou que eu não vinha mais, pensou? Pois vim e trouxe comigo o Chico. É que não sei falar de tempo ainda, ando embananado demais com o instante, que é de outro tempo. Sinto que o instante é mais vasto: nele, que ainda não achei o termo próprio, cabe muita coisa não só ao mesmo tempo, mas numa variabilidade terrível dele. Isso sei simples, sei sem explicação. E se não fosse assim já teria sabido. É uma daquelas coisas que só se chega ao conhecimento em Deus, ou é Deus que chega ao conhecimento em mim? No instante tem muito e pouco tempo. Disseram-me uma vez que o instante é tão agora que por um triz não é futuro. Vivo com você sempre na iminência de: . Abarrotado de coisas, às vezes beiro a loucura. Passo a palavra agora para Chico.

Tempo e Artista

[Chico Buarque – in: Paratodos]

Imagino o artista num anfiteatro
Onde o tempo é a grande estrela
Vejo o tempo obrar a sua arte
Tendo o mesmo artista como tela

Modelando o artista ao seu feitio
O tempo, com seu lápis impreciso
Põe-lhe rugas ao redor da boca
Como contrapesos de um sorriso

Já vestindo a pele do artista
O tempo arrebata-lhe a garganta
O velho cantor subindo ao palco
Apenas abre a voz, e o tempo canta

Dança o tempo sem cessar, montando
O dorso do exausto bailarino
Trêmulo, o ator recita um drama
Que ainda está por ser escrito

No anfiteatro, sob o céu de estrelas
Um concerto eu imagino
Onde, num relance, o tempo alcance a glória
E o artista, o infinito.

Beijo de quem vibra em vossas mãos.

D. L.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

De tempos em tempos...

O tempo me pediu um tempo. Há alguns dias era eu quem sofria de ansiedade diante do silêncio. E agora o silêncio me conta segredos do tempo. Vou contar:

O Tempo certo dia acordou cansado. Rastejou a manhã inteira à espera de uma luz. Era uma manhã surpreendentemente escura. Sem Sol. E o Tempo, assustado, compreendeu que não era ele quem fazia o Sol se erguer detrás do morro. O Sol, o mato, as aves e o nascimento dos bebês: tudo isso seguia independente do Tempo, no caminho torto do devir. Nasciam bebês porque homens e mulheres copulavam e depois as mulheres esperavam vários meses de corpo em transformação para, enfim, a nova vida (talvez) acontecer. A vida sempre quis acontecer, e pouco se importava com o tempo. E, se um dia a vida inventasse de parar - o que me parece impossível - o Tempo continuaria seguindo em círculos, rumo ao nada e ao nunca mais. Porque também a morte independia dele e estava visceralmente ligada à vida. Foi por isso que, quando a luz não veio, o Tempo se fez perdido e fraco, insistiu para morrer ou para voltar a ser dono do mundo. Acontece que aquele Tempo era meu. Cada Tempo tem seu dono e a ele se submete sem saber. Meu Tempo de repente teve pressa. Medo do escuro. Vontade de não sei o que. Meu Tempo acelerou porque assim ele e eu desejamos. E quando, enfim, o Sol se ergueu, meu Tempo pediu um tempo.

Hoje, queridos, não é que eu esteja sem tempo. Na verdade, há sempre algumas horas ou pequenos minutos que nos servem muito bem para uma carta, um afago, uma olhada de relance para o espelho. Mas a verdade é que nada disso eu andei fazendo. Não pude escrever porque as palavras me saíam duras como o relógio concreto do horário comercial. Os afagos eu guardei no coração, porque tomei certa aversão ao excesso: todo amor do mundo se converteu em falsidade, melodrama, cena de novela da TV. Eu não assisto televisão. Sou de outro tempo. De bordados e tricôs. Acordei velha há alguns dias. E só faço envelhecer mais e mais. Por isso também evitei o espelho.

O prazer me aconteceu algumas vezes: pegou-me de surpresa. Sempre acho que o prazer tem gosto e cor de groselha. E cheiro de cereja. Ou de frutas tropicais. O prazer tem um suco de cores que se transformam. E faz cócegas na garganta. Mas foi breve. Foi então que Romeu Montecchio perguntou onde estava Julieta Capuleto. E então eu soube novamente - pela terceira vez na vida - daquela verdade repetida e clichê: esses encantos excessivos só se eternizam na tragédia. Julieta viva é Julieta Qualquer. Pode ser chamada Maria, Cecília, Beatriz ou Dulcicleide. Julieta viva sou eu. Com planos, sonhos e cansaços de mulher comum. Nada trágico, é tão-somente o tédio. Não uma adaga no peito ou um veneno de mentira: só uma preguiça de fim de tarde e vontade de descansar nos braços de um irmão-amante. Mortal, moral, espelho ordinário de outras tantas vidas. Feliz nas sutilezas.

Pergunto a vocês: pode o amor ganhar novos nomes e diferentes cores? E pode o Tempo ter paciência diante do amor-ordinário? Meu Tempo sossega enquanto ainda é tempo. E eu ainda acredito que um enlace de pernas entediado de uma tarde pode inventar doçuras de groselha e gozo. Amor brincante.

Brincando sem rumo, cansada e viva,

Rebeca

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

,


Por medo escrevo.

Tive medo de que não mais me matasse, Rebeca. Ninguém no mundo além de você me apunhala assim. Você me presenteia com a possibilidade do que ainda não havia vivido, com algumas das restantes vidas de um gato sem raça. Espero que eu tenha mais de sete.

Minha mãe, hoje mesmo, contou-me um segredo enquanto arrumávamos os copos cotidianos como se fossem cristais (esses só para os dias de festejo). Contou-me que vez
ou outra deveríamos conversar com Deus e pedir que morrêssemos agora para então re-viver no próximo instante do agora.

Você é Deus, Rebeca? Infiltra-se da célula mais superficial da pele, até a mais escondida dos meus átrios e num golpe mostra que se só de pão consigo existir, devo então lutar por mais. Só pão não me basta.

Obrigada por me fazer entender.

Obrigada por ter ouvido sua voz mais de perto do que quando leio suas cartas, sim, sou eu quem leio, mas sua voz é quem dita em meu corpo estremecido os venenos que me concedem a vida.


Peço desculpas a vocês pela demora a escrever. Passou por mim uma brisa sombria que soprava gelo. Vislumbrei palavras congeladas e não queria que as minhas assim ficassem. Tive pavor de que elas se tornassem algo diferente dos gestos que nunca são iguais apesar de quando em cartaz sejam encenados milhares de vezes. Eles são únicos, eles têm som, textura, cor e gosto.

Quero que minhas palavras sejam assim, sei que não as tolheriam, nem fariam delas ponto final, mas por zelo as guardei em uma caixinha de madeira atrás do guarda-roupa. Só depois percebi que eu mesma as sufoquei.

Sinto-me à vontade em agora dizer: “Odeio os Montecchios”, sei que entendem todo o movimento dessa frase, bem como, quando digo que amo.


Com todas as vidas que terei e minhas tolas e simplórias palavras,
Julieta

Paranoiando



Não tenho tempo para esperar, peço desculpas. Suas demoras alimentaram minha paranóia - ou eu ainda não havia contado? Não havia contado, então, que sofro de um medo absurdo dos inimigos que me perseguem naquelas horas em que meus amigos faltam? Pois bem, conto agora. Não me envergonho. Não há quem não tenha um inimigo, nem que seja daqueles sutis, escondidos, velados - inimigos que sorriem. Eu me tremo toda por causa de inimigos que sorriem. Não um Romeu Montecchio. Montecchios e meninos-amantes nunca foram inimigos. Por Deus, Julieta, você bem sabe disso. Sua mãe já deve ter contado aquele segredo: os maiores inimigos são mulheres. Sabe como? Essas, querida. Inimigas íntimas. Cheias de doçura. Sou uma delas - uma de nós, e agora deixo Dorian de fora desse nosso segredo (embora eu saiba que ele haverá de ler).

Preste atenção: Não digo de inimigas de seus ideais de vida, suas visões políticas ou qualquer coisa assim. Essas são inimigas simples, claras, retas. Digo das outras. Digos de quando são inimigas da sua nuca-à-mostra, da sua pureza, de seus orgasmos, ou, quem sabe, do amor que lhe dedicam as crianças, os homens e os passarinhos.

Tenho, pois, uma inimiga. Ou algumas. Dessas inimizades mesquinhas mesmo. Não me dou bem com os tornozelos de rainha de uma delas e, por vingança, faço com que ela brigue para sempre com meu ventre em chamas. Frígida e bela, aquela. Cor de gelo e cristal. Outra já não suporta minha sutileza: exige de mim um grito de gralha. Dou a ela vinho, violino e uma frase em francês. Provocação. É que odeio nela a altivez, a força e o nariz-fininho-em-pé. Dá ordens como uma rainha má. E todos se curvam - se por amor ou por medo, pouco importa, são delas rendidos. Não meus.

Há outras. Essas mal sabem. Passam diante dos olhos dele - o escolhido por mim - e eu jamais permiti que fossem mais esvoaçantes ou belas ou risonhas ou brilhantes e, por vezes, tenho vontade de decretar uma lei: "a nenhuma outra é permitido que me supere, nem em beleza nem em encanto, nem em talento nem em doçura, ao menos diante do meu amado - o Rei.". E então me lembro: não sou rainha má nariz-fininho-em-pé. Não se curvam, essas meninas. Mal se intimidam. Continuam dançando em suas volúpias. E véus, fantasias, levezas e líquidos.

Volto-me, então, para a última. Inimiga restante. Dela tenho a carne e o desejo. Atende por um nome de mulher. Por vezes é molequinho perdido. Termino, Julieta, com o maior dos clichês: "Espelho, espelho meu, que inimiga minha é mais forte que eu?" Mas é por pura vaidade, veja se consigo me fazer entender: se as maiores inimigas são mulheres, mais mulher que todas as outras será a inimiga-mor - a inquisidora.

Mudei de idéia, quanto a uma carta antiga: quem é fêmea é a maldade. Também a inquisição. A desrazão. A paranóia. A morte.

Despeço-me de você, inimiga-amiga. Perdôo sua falha se você mandar bem depressa uma resposta.
Até breve.

Rebeca

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

A uma Capuleto




Perdoem-me, amores, mas eu preciso dizer: andamos brigando com o impossível. Socando o ar. Urrando de ódio contra o nada. Pois me diga, minha Julieta, se não notou que, enquanto você riscava ferozmente o nome "Montecchio" de seu diário, um belo rapaz nu abandonava sua cama e partia pra bem longe do seu lado, dos seus braços e dos seus cabelos negros molhados.

Andamos brigando com as letras e gritando em silêncio. Ontem mesmo comi um punhado de terra: queria que em meu ventre brotassem rosas azuis. Mas a vida não é feita de pequenos encantos literários. De breguices insanas que desaguam de minha boca: "amor meu, coisinha do meu coração, furor de meus dias, vem fazer a vida ser mais bela." A vida é mais bruta e dura. E, se aquele homem de meus sonhos raramente entende o que eu digo, é que ando mais tentando alcançar as palavras - na minha vaidade de conhecer todos os sinônimos do mundo - do que expressar os instantes. O instante não diz "eu te amo", porque seria por demais piegas. Como eu disse, é tudo sempre bruto e duro. O instante olha, alcança a mão, acaricia as linhas da palma e brinca de ler o futuro. E sempre erra. E o instante é incapaz de prometer. Daí que buscamos promessas nas palavras. Pra-sempre. Por-toda-a-vida. Amor-meu. Encanto-de-fim-de-tarde. Elas prometem que todas as coisas podem, um dia, vir a existir. Ou que agora já existem, da forma como acreditamos. Permitam-me que eu seja didática: amores, as palavras são tão-somente a forma como inventamos o mundo.

Mas, não, não tentem arranhá-las, matá-las, riscá-las: o mal maior já foi feito bem antes, bem cedo. São formas-donas. Donas de nós. Bem cedo Montecchio se chamou Montecchio e o jeito agora é fazer amor com o nome-homem inimigo - achando graça no proibido. Montecchio é mais gostoso porque se chama Montecchio. Fosse um simples Romeu Qualquer - um Silva, Moreira ou Vinoli - , não haveria porque trancar a porta do quarto, fazer de tudo pro papai não ver e muito menos pedir pra ama de leite proteção de anjo da guarda.

Ah, esses nomes. Acaso ferí-los com ferro poderá, de fato, matá-los? Já existem, flutuam no infinito, e não há morte para o que nunca viveu. Quem vive somos nós, feitos de carne e carbono - e um pouquinho de alma. Por isso eu apenas brinco com eles, já submissa. Montecchio, bicicleta, coração. Casa, orgasmo, coragem. Vício, virtude, Deus. Facilidade, vicissitude, razão. Lançamento, atitude, ilusão. Demônio, alturas, vertigem, sonho. Grito.

Meu nome hoje é Grito. Mas Rebeca é sempre coisa rara. Minha razão de querer me fazer todas as outras - e todos os outros - do mundo. E depois ter pra onde voltar. Um corpo com nome de mulher.

Baseado em uma perversão:

Ultimamente, o que tem sido o meu consolo é a aparente rotação do mundo e a esperança de que ele insiste lentamente nisso. Mas mesmo sabendo que nada dura além do que precisa ser, sinto com este corpo que qualquer mudança é com muito custo. E às vezes não sei esperar a demora de uma mudança, ou simplesmente me recuso. Então apoio as mãos bem abertas na parede e exerço pressões fazendo força com os pés para ajudar o mundo a girar um pouco mais depressa.

E que mesmo sendo muito jovem, tenho todo tempo do mundo. Mas o tempo é petulante a ponto de passar mais rápido do que o mundo consegue girar. Isso faz a gente não aparentar a idade que tem. Mas e se esta for realmente a idade que se tem e o mundo é que por piedade resolve girar devagar?

A pior coisa não é sofrer a impaciência da espera de uma demora, mas ter demorado demais em uma delas. Talvez essa seja a piedade do mundo me dando a chance de não me obrigar à imprudência de esperar demais. A sensação é a de ter a vida passando pela janela.

e Observando: Foi assim que me dei conta de um novo vizinho que, segurando um livro, vem recostar-se ao pé do tronco largo de uma mangueira velha todo o fim de tarde. Acho que gostariam de ver o que vi meus amores. É peculiar a forma como lê o livro. Ou como nos engana. Com a cara enterrada nas páginas amareladas, o vizinho apóia o livro nas pernas dobradas e na parte inferior do abdômen, deixando as mãos livres de qualquer peso. E assim, com os lábios semi-cerrados mantêm os olhos serenos fixos num ponto da folha e acaricia fogoso as bordas das páginas que se desprendem do bolo. Isso tudo aparentemente distante, com respiração um pouco contida e rosto ligeiramente avermelhado. Olhando mais de perto nota-se o quanto seus dedos já foram molestados pelo fio das páginas – estão com as pontas literalmente-fodidas. Fim

Uso a palavra espera porque preciso mesmo de uma brutalidade. É quando de fato sinto que algo, enfim, mudou. Quando sou arrancado violentamente de mim mesmo e do mundo, ou quando não consigo simultaneamente caber nos dois, e então sou obrigado a me fazer de novo. Estabanado e sem habilidades de qualquer espécie. É por isso que por vezes espero além da conta – é porque quero alguém que me traga respostas, que me dê o que fazer ou que me leve para longe, onde tudo isso que se seguiu até agora virou tudo mentira. Não tenho coragem.

Talvez um lugar onde perder o sobrenome é também perder o mundo seja suficiente – mas agora já me dei conta de que estou num lugar desses, e eu é quem insisto no nome. Polissemia. Sempre gostei de brincar com isso, de ler os textos ao contrário. De achar palavras dentro de palavras. Assim, nunca fui de entender bem, acho que sempre criei um entendimento para mim. Um entendimento secreto do mundo.

Não escrevo essas cartas lamentando ou esperando algum tipo de iluminação – esse alguém que vem me trazer respostas ou me levar do mundo. Permita-me o roubo Rebeca, mas é também porque preciso. Penso à maneira de um escritor. Às vezes tenho que me imaginar escrevendo o pensamento para conseguir pensar efetivamente. Escrever é o modo que tenho de achar a concretude dos sonhos. Um nada de onde conseguimos tirar um mundo de coisas. (Talvez, escrever possa ser justamente a minha coragem. Escrever é o modo pelo qual intensifico essa minha perturbação ao ponto da brutalidade de que preciso para mudar. Enfim, obrigado a passar. Uma escrita corajosa). Mas já escrevi demais sobre isso. A diante.

Polissemia não é liberdade. Foi o que aprendi nesses anos de entendimento confuso. E que sinônimos são as coisas mais desprezíveis para um texto. Uma espécie de enriquecimento estético que pode devastar o sentido que custosamente vem à tona. Odeio quem perversamente troca alhos por bugalhos.

E mesmo não livre, a polissemia permite alguma brincadeira. É com ela que entalho assimetrias tão harmoniosas que parecem simétricas. Só que ainda me sinto compelido a dizer coisas. Compelido talvez não seja a palavra exatamente pelo que me obriga a dizer. É isso, vou trocar compelido por obrigado. Às vezes sinto que a polissemia me permite uma mobilidade maior, mas que também me desobriga da mudançaobilidade maior - uma peido talvez – uma gama de rostos para espalhar e fingir que finjo que finjo que não sei.

Sempre fui uma pessoa muito ansiosa. Anseio pelo momento de sair exuberante e me perder…, mas freqüentemente fico só na ânsia. É quando recorro à polissemia – quando me recuso a comer.

Sem mais delongas por hoje.

Polissemicamente,

D. L.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Breve

Meus amores,

Sabem o que decorei, numa tentativa de drama frente ao espelho, a espera de uma lágrima real? Isso, que feito Julieta repeti:

“Meu inimigo é apenas o teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não fosses. Que é Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença ao corpo. Sê outro nome. Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume. Assim Romeu, se não tivesse o nome de Romeu, conservara a tão preciosa perfeição que dele é sem esse título. Romeu, risca teu nome, e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo, fica comigo inteira.”

Por isso, ausento-me, tenho me ocupado de riscar palavras como Romeu deveria ter feito com seu nome, já que não fez , eu faço.

Tenho acabado com as palavras com uma raiva intensa. Perdoem-me.

A vocês – meus verbos sem tempo que nunca secam – todas minhas palavras ainda intactas,

Julieta.

Fragmento #3

Meus amores pequenos,

Isso é também morte de atrizes e escritoras. Eu que coleciono momentos de morte não estou conseguindo viver agora. Não consigo mais achar o peso deste sonho, seu ponto de concretude para que possa creditar. De que me adianta a leveza dos sonhos?, eu que vou me fazendo de pesadelos.

À escritora, é como se arrancassem seu ventre de papel em uma operação assistida por uma classe inteira. E então, lançasse aquele olhar gélido ao corpo dissecado deixando explícita a arrogância de um: invente-se!! Ande! Queremos ver agora, sem substrato algum.

À comediante, é como se atassem todos os seus membros bem rentes ao corpo pequeno. Pendurassem nela sacos pesados de areia e vendassem seus olhos, entregando em suas mãos um papel dramático ainda nem decorado que deve, contudo, ser vivido com leveza e graça.

Sei que prometi voltar apenas durante a noite, mas não pude resistir à intenção.

A sensação de que não estou conseguindo. Este é o gozo mais rígido que já precisei ter.

Entendam-me bem meus amores, não sou ator nem escritor. Apareço em curtíssimos instantes de alegria em lugares diferentes: sou o gozador.

Acho que tenho que pedir licença – tarde demais, para a minha desordem. Mas é que o instante é todo assim, coisa louca que vai puxando a gente. É um punho só para fotografar em palavras o que vai ganhando existência em mim. Já tentei deixar o punho livre e solto, tentar escrever de uma vez só e psicografar o que vai ganhando consistência. Fui acometido por uma tal velocidade que nem mesmo reticências aqui cabem (Reticente não é o termo). De tal forma que o que se seguiu foi um enorme buraco na folha que não vou reproduzir aqui porque já estou me debatendo demais.

E ainda sinto que tudo isso não basta. Como se não bastasse minha desordem tosca. Meu corpo todo é palco de batalhas. Nele cortam corpo afora Führers portugueses e franceses e uma mão de ferro inglesa. Todos eles generais, nominais e substantivos. Nada contra substâncias: ao tentar filmar o instante em palavras – quando se seguiu todo aquele rombo enorme – foi por um triz que não passei de líquido para vapor. Tenho medo de ser gaseificado. E é também porque sou bom filho que preciso ceder variavelmente a artigos definidos, pronomes, tempos – o caralho a quatro.

Hoje encontrei com um dos grandes. Fui atormentado até chegar ao ponto de precisar me desenrolar aqui. E pela primeira vez cabe reticências, porque há segredos que me recuso a contar até mesmo aqui. Mas não se preocupem, o que escrevo aqui é bobagem minha, é coisa de ninguém. E isso é minha pequena arma, meu puro dengo.

Vou parar novamente. É que agora preciso de um pouco mais de coragem para escrever as palavras que achei. Talvez volte, mas não esperem por mim.

Em uma briga de pronomes...

D. L.

Fragmento #2

Achei.

E sinto que isso vai me matar. Sinto que se entrar nisso que me toma agora estarei morrendo aquela morte pesada (aquela que transformam em leve demais): a que vai ficando rarefeito em mim aquilo que faz de uma vida uma sucessão de mortes instantâneas.

O meu corpo todo sem contorno está gelado agora, Rebeca, e à espera. Espera que você espalme as mãos, escolha dois dedos e passeie por ele traçando desenhos em minha superfície líquida. Preciso dessa sua compaixão, me ajude a ganhar agora um traço efêmero que seja nessa minha consistência aquosa.

E o que me incomoda sempre é que cá estou vomitando orações gigantescas, mas que com todo esforço não consigo emitir som algum. Não grito Rebeca, T.H. ou Aleluia porque sei que não vão me escutar. E bem aqui, pertinho da ponta do lápis, há um mundo inteiro de acordes que escuto pelas pontas dos dedos vibrando na madeira.

Isso me enche de uma tranqüilidade vestida pelo avesso. Nesse mundo vasto haver muito grafite e tinta faz ecoar estrondos gráficos. O que escrevo aqui dá choques. E isso não é um desperdício de música.

Mas não posso mais continuar agora. Preciso digerir o que rabisquei até agora para juntar com o que se segue. Volto pela noite.

Beijos

D.L.

Fragmento #1

E se eu for, sempre terá notícias minhas. Mas não se assuste querida. Atingi o entusiasmo, uma exaltação em marcha ré… Como em um daqueles momentos em que somos invadidos por uma alegria clandestina – essa filha de puta estrangeira (risos)! A alegria me come pelas bordas, é sempre por lá que começa...

Não me estranhe hoje, esparramei-me todo como se alguém retirasse o fio que me recorta. Estou escorrendo por todos os cantos. Seguindo as junções dos azulejos, indo e indo até bater no rodapé da folha.

Ah! Como estou grande hoje, é carnaval! Só não me ofereço para acompanhar-te à praia porque isso atrapalharia sermos presa-fácil. Por pura cumplicidade vou ser presa-fácil em outro lugar.

E é também porque adoro. Tive uma visão maravilhosa de ti hoje, daqui do canto escuro. Acompanhei Rebeca disparando da varanda modesta e correndo em ponto de bala até o jardim. Comendo punhados de terra fresca. Furiosa e ávida. E eu aqui todo encantado. Como se deliciava com as minhocas se contorcendo entre os dentes nervosos e os caracóis escapulindo de seus dedos finos.

Às vezes sinto vontade de chafurdar a terra, mas não tenho a coragem de disparar como tu. Atolaria a cara na lama num outro sentido. É que me irrito profundamente comigo. É que ando me culpando muito. E que falar apenas não me basta. Preciso me desenrolar em uma dança de mãos e braços para perseguir um pensamento fugitivo – que se esvai a cada gesto interrompido.

E eu sempre me recuso em conter-me. Em ficar mais duro do que já estou. Sinto-me tão capturado dentro de um espelho que por vezes sou a coisa própria. Sou o próprio espelho que é um vazio-cheio-cristalizado. É o que se alcança quando se está condenado a ser o que só eu seria – essa é a coisa conseguida. E isso também me corta peito afora. Um mundo que não cabe braço e mão – tudo é estátua de Milo.

Aí o que me salva são vocês, que vêm galopantes. E essa escrita alegre. A escrita é a minha ação. Mas onde quero chegar com isso? Preciso chegar a algum lugar…mas no momento perdi o que me interessava. ficou rarefeito.

Volto a escrever depois.

Do seu

D. L.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008



Mas não agora. Do que é que você se despede eu nem sei bem, mas não se vá agora. É Carnaval e noite escura e à noite - sozinha na praia - sempre há um homem perseguidor. Fantasio-me agora de Chapeuzinho Vermelho. Ou de Lolita-andando-a-passos-lentos: pra ser pega.

Não, não vá agora. Assista a isso, por favor. Eu não faço meus desatinos sem platéia, e você é uma platéia adorável, meu Dorian morto de amor.

É um vento frio. E eu peço, imploro, exijo que sintam o calor-líquido vertendo aqui, bem aqui. Nada mais belo para uma noite fria do que uma mulher - bela ou não - pronta e inteira para o amor. E assim me fantasio, Dorian. Como Odalisca em chamas. Conhecedora de incensos, essências e massagens nos ombros. Mas a luz é fraca. No instante seguinte, o escuro me prega uma peça: à meia-luz, sou apenas um molequinho que solta pipas. Um coelhinho escondido na toca. Um passarinho azul. Tudo na imaginação lúdica de uma platéia enternecida: "coisinha linda feita pra fazer sorrir"!

Rebeca. Rebeca. Rebeca. Repito meu nome e entendo que isso é um nome de mulher. Chamo meu nome a todo instante, busco-o no escuro perseguido pelo homem de más intenções ou num perfume maldito de final de dia, encontro-o em papeizinhos com cheiro de jasmim e num amor violento que dói pra valer à pena.

Entenda, querido: peço que fique, porque você, sim, conhece meu nome. Grite "Rebeca" ao molequinho das pipas ou ao coelhinho da toca e, de repente, o mundo inteiro ganhará ondas de mar, amor e gozo. E, de repente, eu vou nascer. Grite "Mulher" a qualquer forma viva que encontrar no mundo, e o calor-líquido-gozo-vivo fará brotar o universo em flor. Não lhe peço perdão pela loucura de hoje: no Carnaval eu posso dizer que todo nascimento é fêmea.

*
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*

Rebeca

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

De quem não tem o que falar:

Bem,

Que vontade de encher esta página com reticências. Mas reticente não é bem o termo. Eu que sou mágico não consigo deixar omisso 1 metro e 95 de carne-viva.

Carne-viva-apaixonada é que nem erva daninha, quanto menor o tempo, maior é a intensidade com que se espalha.

Sabe qual é o problema das palavras, meu amor? É que nunca se consegue chegar totalmente com elas. Sempre termino insatisfeito quando tenho que recorrer à língua. Ela é intrinsecamente pesada e é por puro dengo que faço dela algo leve. Termino porque sinto que preciso parar, mas nunca porque alcancei o termo. Aquele ponto todo nervo do real.

Não sei se você consegue me entender. Até agora nem parece ter sido o caso. Mas logo darei algo para que você possa juntar.

A minha verdadeira língua, a língua primordial, é ainda intocada e toda informe. E de forma alguma há aqui hesitação. Tem muito corpo pairando o abismo que por pura aprendizagem não vira corpo caído entre espelhos.

E eu sei! Não vou me dar nem ao trabalho de te deixar explicar, simplesmente sei – é tecnologia de ponta: Todo esse corpo-carne-viva-que-paira-e-aprende. Sou de gostar assim: a cada passo que dou, gosto e me arrependo. Há em mim sempre uma ingenuidade medrosa. Gosto como criança gosta de doces. Inteiro.

Mas aprendizagem só consegue ser se for riscando. É já de Maternal que aprendi a ligar pontos e completar figuras com riscos. Aprendi que não poderia ter um nome se não fosse também riscando – eis-me!

Vou dar um tempo agora.

Voltei.

o que me acontece agora não dói. Felicidade dói. Alegria não. Mas o que capto agora não é alegria. É algo como o que senti ontem quando terminava de ler um livro – talvez agora eu escreva algo que você possa juntar. Sabe como se sente quando algo termina abruptamente? Deve ser o mesmo que se sente quando se acaba de morrer. “É como se a vida dissesse o seguinte: e simplesmente não houvesse o seguinte. Só os dois pontos à espera.”

Mas só de birra não vou ficar triste. Vivo de passagem. E ainda fazendo pirraça. E sempre fui de me curar muito rápido. O que de forma alguma deixa as coisas mais leves. Elas têm o mesmo peso que teriam se eu levasse dias moribundo em uma cama.

E assim não há o que lamentar. Não gosto de quem faz da insuficiência analogia do lamento. Ou de quem faz da morte algo mais leve do que precisa ser. É que nunca gostei de sinônimos.

Bjos

Eis, afinal e enfim, o que não quero mais!

D.L. (Di)

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Escrito simples e breve


A vocês,

Demorei sim, demorei a escolher a fantasia deste carnaval.

Como um bombardeio percebi que não sei o que, afinal, quero! Por isso a demora, por isso tanto pensar, até quando recolhia as pedrinhas da rua, assim como contava quantos carros amarelos por mim passavam. Nenhum.

Ah, envenenei-me com os próprios anseios. Nem notei que se o breve ainda não veio, se hoje florescem as árvores e amanhã eu piso em suas folhas secas, não sei o que quero por muito tempo. Só por agora e daqui um pouco, um pouquinho.

*

Ah os espelhos, as fotografias, minha imagem, minhas palavras curtas e simples ... são diferentes e não sei mais quem sou. Outra, talvez eu mesma ou aquela. E o que todos vêem?

Com amor de hoje, amanhã e depois,

Quem tomou para si ... Julieta ...

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Bilhete de fim de tarde



É breve. Amanhã acordarei já cansada, porque o dia começará sem mar, digo, sem espelho onde mergulhar. Fantasia é uma tolice, mas eu nunca soube outra coisa. Desaprendi antes mesmo de saber e envelheci bem antes de crescer, porque já tinha ânsias de voltar a ser criança. Passei a vida adivinhando o futuro e tendo uma pressa ao contrário. Sou um ciclo.

Descanse-me, Dorian, caso me queira bem. Junte esses seus dois espelhos e deixe que eu suma mergulhada num vão espelhado cheio de luzes e cores. Nem sinta saudades. O amor está lá do outro lado. Meu amor entre flores amarelas.

Sem mais,

Rebeca

De quem viu um menino vivo no espelho:

Minhas caras,

O que quero, afinal?

E se o mundo fosse todinho espelho?

Não seria. Porque espelho é a coisa parida mais emaranhada que existe. Calma! Espere um pouco... Agora acho que haveria apenas peso. É isto! se o mundo fosse inteirinho espelho haveria apenas excesso de peso.

Vou ensinar-lhes uma mágica: colem dois espelhos juntos, um refletindo o outro, e pronto: parimos um mundo inteiro e inconcebível. Isto é segredo de encantador. Dar à luz ao que não pode nascer. O que fica entre os espelhos é tão vasto e destruidor que vai devorando e devorando e devorando. Espelho é vácuo endurecido. Puxa... !

Mas eu que de mágico não tenho só os encantos, intui uma forma garantida de viver num nada duro e fundo. Nasci vidente. Eu, adivinho que sou, acho que estou entendendo agora como um mundo inteiro espelhado pode ser: bola de cristal é mundo-todo-espelho de mesa, é buraco todo cavado no nada de onde se tira tudo.

Estou boiando em silêncio no meio. Achei a leveza. Cair entre dois espelhos é um só Adeus!... Isso é também mistério de manicures e cabeleleiros: Quem não tem medo de reflexo que os acompanhe.

Dorian G.

domingo, 27 de janeiro de 2008

a uma Julieta (e a outros)

*
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Enfim, entrego-me à loucura. Saindo da condição de perspicaz observadora, entrego-me às suas palavras, doce Julieta: você também sabe que minha intensidade acontece bem longe de olhares todos. Acontece à parte. No canto da festa, no escuro da razão. Não é a vocês que respondo hoje. É a mim. Porque minha vida é de uma intensidade que quase ninguém vê. Secreta. Rebeca é um sopro. Rebeca é uma cortina transparente, um véu de noiva. Uma florzinha vermelha escondida no mato. Digo-me hoje em terceira pessoa porque assim não me dói na carne que mal me sustenta:

Rebeca conhece, sim, esse amor bonitinho de bordar toalhas. E também vive o tal gozo queima-corpo. Arde. Certa vez um amante ressurgiu de uma gaveta de recordações. Um amante antigo. De nome Haroldo. E foi então que a coisa toda aconteceu: ele olhou para Rebeca com desejo e Rebeca recebeu o desejo. Nada de subterfúgios pra dar outro nome ao desejo. Não era mais aquela pureza dos tempos delicados. Era simples assim: ela diria: "vem, benzinho, que aqui tá escuro e ninguém vai ver..." E ele a tomaria pela cintura, tocariam-se bem embaixo onde tudo sempre começa. Não haveria amanhã. Fossem tão simples as palavras do gozo ("eu quero, tu queres?"), e não haveria motivo para um vocabulário tão extenso.

O amor aprendeu mais cedo essas sutilezas. Sim, Julieta, esse amor de bordar toalhas. Ele fala com olhos de menino, ri que ri e depois repousa no colo. Parece que o mundo inteiro é feito de borboletas amarelas. E não se engane: não é grandioso. É uma simples promessa: promete que o amanhã existe e que lá (no amanhã) você acordará tendo uma mão firme na sua mão e alguém que amará a toalha bordada por seus dedinhos feridos pela agulha fina. Esses dedinhos delicados sangrando assim.

Chame o amor como se cantasse em uma língua desconhecida. Deslize. E chame o gozo, busque-o sem pudor. Diga que quer. Peça com um pouquinho de safadeza, diga palavras que não escreveria num texto bonito - palavras que só podem ser ditas no escuro. Mesmo que esteja bem claro. Esses dias eu diria que às vezes é necessário queimar os olhos. Levar o ardor dos sonhos pra uma realidade concreta. O príncipe das telas de cinema para o corpo do homem que dorme quietinho ao seu lado. Todos os amantes do mundo para a sua cama. Em sonhos aguantes de quem sabe que o desejo maior é irrealizável e, mais que isso, menos desejado do que nos parece.


Vocês querem o que, afinal?

*
*
*

Com amor,

Rebeca

Meu amado,

Parece que não dou sossego para suas palavras, logo respondo como num respiro descompassado, e sabe por quê?

Ah, é que sua aflição, seu gozo preso por entre os músculos, seus sentimentos genuínos, ou não, me carregam para um alto de penhasco-mãe. Um lugar onde me sinto responsável por sua vida e nela gostaria de ao menos embalar cantigas reconfortantes para que seu sono seja tranqüilo e que as manhãs jorrem café forte e quente.
Nego-me a pensar na possibilidade de que seja atropelado pela fome canibal das feras que nos tolhem os mais secretos desejos. Sonhe.

Permita-se sentir, nem que em coleção de raros momentos, a alegria da criança que é dona de poucas, mas preciosas pedrinhas recolhidas ao longo do caminho e deixadas no bolso até o esquecimento.

Não se engane meu amor, mentira dos que dizem que a febre é defesa do corpo!
Esse alvoroço não doença, é o sinal de que é chegada a hora de não ter chão, portanto, não se preocupe, não terá mapa algum que melhor lhe aponte o rumo do que a boca em que se beijam as palavras que tanto procura e escapam.

Não acredite que eu entendo do que nesse momento lhe sussurro. Não vivi intensamente nada que possa parecer digno de entender tais mistérios, mas minhas entranhas é que de maneira sutil ditam essas linhas contorcidas e chego a acreditar no que digo...

E se as contrações de um parto são dolorosas, o seu riso que apenas eu capturei – o que tenho guardado feito fotografia na alma; aquele que você não sabe que faz e muito menos como faz – abranda a dor e se quiser permito que nasça quantas vezes for preciso e cedo meu corpo, meu útero intacto, só para que sorria novamente.

São tantas as coisas que queria te dizer, mas escapam dentro de minha caixinha de costura e levam consigo todas as agulhas que nunca encontro para pregar botões ou quem sabe as flores bordadas para um novo amor (Ah Rebeca, sei que me nesse instante me lê e reconhece).

O que de fato não me falha agora é a visão que tive, confia em mim? Acompanhe-me neste vestígio de vida.
Caminhava por entre ruas por debaixo de gotículas finas de um fim de dia qualquer, passava por entre casas e observava a vida e os signos por entre as janelas que insistiam em abrir, mesmo com o clima não tão agradável. Em apenas uma janela, vasinhos pintados com a mais florida paisagem, como se a primavera perseverasse. Não estava só, mas sim, junto sua mais cúmplice companhia – seu coração, seu domingo nublado, seu filme francês, sua canção ao pé do ouvido – e colocavam à mesa xícaras e um bolo quente de fubá. Olharam para o lado de fora e a mim encontraram e num aceno chamavam-me para dividir tal tarde de inverno.

Não tema, aprenderá...

Não tema, já está tudo pronto escondido em algum canto ainda secreto, inclusive o chá que tomaremos na tarde sonhada.

A quem de tanta paixão, num lapso, denominou-se Di, com amor que invento a cada santo dia,

[T.H.]

Pequeno bilhete


Minhas queridas,

Andei um pouco em torno do mesmo ponto. Foi assim que me senti, mas agora também sinto que avancei.

Entretanto, quero ver com vocês uma coisa:

Carlos é de nós três o mais medroso. Com seus vinte e poucos anos, tem medo que a água do banho leve embora o seu cheiro. Por isso, Carlos esfrega roupas suadas pelo corpo todo após o banho. O que considera um ato de higiene heróica.

Conseguiram ver? Que armas temos nas mãos, não? Em três linhas criamos um banheiro, um banho, um cheiro – uma vida. É por isso que me movo com cuidado entre as palavras. Azar o meu que sou estabanado de natureza.

Hoje não estou aqui porque “preciso”. Resolvi fazer algumas anotações e cá estou. A minha língua se enrola hoje em um excesso de palavras, logo hoje que quero tanto ser menos. Vim ofertá-las a quem quer me leia agora neste curto bilhete.

Jéssica é menina mimada, cresceu entre bonecas Barbies e muita comida. Hoje quase adulta fora de época, Jéssica desce pelos elevadores do prédio fazendo poses para uma câmera que imagina existir. Fica puta quando tem que usar as escadas.

Mais uma cena inteira.

Beijos

D. L.


sábado, 26 de janeiro de 2008

Minhas queridas pervertidas (ou apenas minha querida),

De já uma pausa! Preciso respirar profundamente antes de dar seqüência às palavras que me acontecem agora.

Pronto.

Não sei como é para vocês, mas escrever sempre me força à postura (já escrevi isso em outro lugar – mas me ajuda a começar agora). Ponho o quê?

Antes de qualquer coisa, quero meter o corpo. Escrevo a vocês inteiro, meus amores, aos pulmões arfantes. E nisso está incluso “aquilo” em mim que só existe como captura e não como captado. É sempre um exercício de linguagem, o qual levo a cabo muito cansado e dolorido. E a dor é sempre a dor de um parto. Sempre tento chegar desse modo. “Você que me lê agora me ajude a nascer”!

Cá estou gozando. Despertei queimando esta noite e é também porque preciso que estou aqui. Em que estado de corpo? É sempre em apaixonamento. Meu corpo cozinha todo em uma febre branda e então amo. É um tal apaixonamento que borbulho por dentro e minha respiração fica assim, descompassada.

Pulei da cama esta noite em desvarios de febre-amadora para criar um corpo junto ao meu que me devolvesse o pulsar do tempo.

Mais uma pausa! Respirar ficou difícil.

Há quase uma semana perdi meu rosto. Estou em carne viva-apaixonada e me recuso a olhar no espelho – existe um menino vivo lá dentro, como pode?. Por um desatino de ardência morna precipito meu corpo. Preciso inventar um rosto-a-dois já - uma face comum.

Preciso de um mapa para me orientar, minhas queridas. O meu corpo é repuxado para frente, para trás e para os lados. Amo de longe. Sou tão simples e sem mistérios. Nunca precisei estender tanto a pele para chegar em algum lugar. Mas é sempre Uma Aprendizagem, Lóri - ou o livro dos prazeres.

Perdi meu rosto e pela primeira vez não estou assustado. Estou em uma ternura-febril: tenho que inventar tudo, aprender a me guiar nisso que me aconteceu de mais alegre. Estou a ponto de inventar-a-dois o tempo, o espaço, a presença, o sabor, o beijo – o amor. E a invenção dói a dor de uma distância que preciso reinventar para me aliviar as contrações desse parto.

Meu corpo treme todo de desejo. Assim, de repente.

E então sinto com toda a certeza deste corpo que não estou conseguindo. Amar só é fácil pra quem teve muito carinho. Inventei um amor em que preciso acreditar agora – como um último suspiro em vida. Mas como é que se acredita no que é inventado? E isso me corta o coração.

Apelo então para a aprendizagem. Tento apreender “isso” que brota em mim e aprender a me guiar por ele-a-dois. Assim porque quero tanto, quero já e da forma que me puder ser. E desse modo, aprendendo, vou sentindo tudo mais junto. O tempo pulsando no meu punho. O mapa ganha um novo desenho. E instantaneamente tenho um gosto, um cheiro… um beijo.

Preciso respirar novamente. Não consigo achar mais as palavras.

Agora sim,

Eu que me apaixono angustiado preciso achar “com” o ponto nevrálgico da ternura. Precipito meu corpo e sinto que posso cair no instante que se sucede. Mas aprender é o que não me deixa sozinho. Como um cabo que me suspende e me poupa do abismo. O rosto-a-dois ganha então uma consistência à moldar. Papel marché de carne-viva-apaixonada.

Aprender exige de mim tempo, e só posso passar por ele “com”, jamais só. Há alguém que segure minha mão? É isso o que espero da alegria.

Uma faceta conjunta, é o que desejo inteiro agora.

Com febre e rosto úmido...

Di

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

É porque eu preciso - pensei logo que vim escrever para vocês. É porque eu preciso. Uma vontade de gozo infinito, um sonho de amor cotidiano - trazem sem pudor essas oferendas, lançam-nas aos nossos escritos e nem imaginam o que provocam. Sequer sentem medo de que eu me perca em suas vontades quase minhas. E eu, cuidadosa que sou, penso em infinitas formas de realizar o desejo de cada um. Queria ser uma fada. Levar aos aposentos dos fundos um leão que ruge de sede; à mesa de centro da sala, linha e agulha pra bordar florzinhas pro novo amor que vai chegar - e entregar a vocês esse lar de loucuras. E a mim, Deus meu: a mim nada trago, nada peço, nada insisto. Tenho é medo. Daí que é mais gostoso olhar e tentar desvendar os desejos de vocês. Faço com um talento inquestionável: eu não preciso supor, eu já sei. Do outro eu sei cada pedacinho, cada detalhe, como se pudesse mergulhar em suas vontades e apreender o bicho, a menina, o homem, a mulher e todas as cores preciosas de seu destino. Sim, queridos: leio a palma de cada mão de vocês. E leio também outras linhas que vocês ingenuamente me trazem.

Leio tudo. Enxergo o violeta infinito que é a vontade de gozar de amor. Reparem, eu nunca estou muito perto: é preciso uma certa distância pra apreciar. Amar de pertinho é raro, é coisa de muita, muita sorte. Em cada lugar que me encontrarem verão sempre a menina prestes a. A ponto de. Mas nunca lá. Estou sempre à beira, à espreita, rastejando infinita esperando o momento de me erguer. Temo pela escrita de vocês porque, ainda que eu saiba que não há na Terra uma alma que seja idêntica a qualquer outra, assusto-me com a idéia de que um de vocês porta meu gozo úmido e quente de leão e o outro, minha história de mulher (minhas duas almas). Peço, então, encarecidamente - pela sutil sanidade que ainda me resta - que sejam reais. Goze, Dorian. Ame, Julieta. E riam juntos enquanto eu sigo meu caminho torto, ao menos certa de que não delirei e de que vocês não nasceram de meu ventre de papel.

Com ternura e alma,

Rebeca

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008


Meus caros,

[Às escondidas já troquei cartas com ambos. Rebeca, espero que não tenhas te esquecido de que admiti ainda ser moça que só escreve à pena, tinteiro, borrão e que obviamente sai do salão em noite de baile na esperança de que o amor se aproxime sem aviso. Ah D.L., a ti todo meu desconforto coloquei, de forma simplória, como fragmentos de letras dispostos em linhas e mesmo assim não consegui.]
Meus dedos não mais acompanham o que ditam minhas sinapses. Elas são tão complexamente distantes das orações simples que eu gostaria de escrever. Já é tudo tão denso que não tenho forças para historiar sobre o que sinto, gostaria mesmo é de escrever sobre o que observo.
Não consigo. Ao observar, dispo-me, envolvo-me, perco-me das constelações e do cheiro das florestas. Sou obscena. Não tenho vergonha, esqueço que sou observada e encaro feito criança frente a um pote de guloseimas vermelhas. É complexamente simples e assim não sei dedilhar, não sei me expressar.
Se amadora, por ter como guia o amor, não quero mais dele falar como sendo algo que mesmo ao propor as palavras mais esmeradas de um dicionário qualquer, não abrangerei sua completude, mesmo se me curvar de tantas sensações e sabeis por quê? Descobri que o amor é simples, meus caros, tão simples que o dizer como taquicardia já é demasia.
Por isso queria tratar de amores assim – serenos – talvez por isso nunca mais tenha escrito, não os alcanço. Apresentam-me apenas vastidões, monstros e catedrais, mas nada tão simples como cheiro de sabonete em pele fresca e farelos de pão em toalha estampada. Quero delinear em sílabas as estampas do vestido campestre e não dizer da dor que afugenta.
Cansei de fonemas duros e amargos e de confundir idéias alheias e próprias com a dura separação dos hiatos...
Sou acentuada, uma proparoxítona, mas que de fato procura apenas monossílabas atônitas para falar de amor e para se dirigir aos vossos olhares.

Com reticências,
[T.H.]

Minha querida Rebeca (ou Minhas caras segredistas),

Esta foi bem difícil, rapidinha e feita nas coxas mesmo...

Há dias venho batendo o queixo desde que li a nossa última carta, mas somente hoje acordei com a língua afiada. O que tenho aqui ainda não é uma carta, é apenas uma grosseira costura de nossas idéias. Conheço você por partes, minha querida, por viver você fragmentária. É assim que me chega sempre, aos pedaços. Juntei aos nossos trapos as idéias de uma amadora que, em plena madrugada, endereçou-me algumas palavras. É também a forma que encontrei de incluí-la nesse nosso instante de gravidez.

É pavoroso!, mas compartilho de um segredo: ando sofrendo ataques de indelicadeza com a aspereza do mundo. O mundo me deixa nervoso e eu ainda não sei o que fazer com isso. Estou cansado. Cansado dessa minha doçura embrutecida. Tentei abrir meus braços para cima e crescer, mas o que consegui foi um tremor nas coxas. A suavidade pode ser também de uma languidez pegajosa que,… Ah meu deus!, preciso dessa nossa vertigem que é escrever. Perverso e vivo – e por enquanto, desse jeito mesmo.

Um dia ainda escreverei cartas apaixonado. Mas acho que nunca deixarei de escrever desejando conseguir alguma espécie de organização. Uma ordem mínima que seja, mas que me faça passar pelo instante. É bem isso que você disse minha querida, uma organização que seja para que eu possa voltar a sonhar. Ou mesmo dormir, amadora.

Quero simplesmente respirar. E não aprendi a fazer isso sem ser me apoiando. Sem ter mãos para segurar. Perverso e vivo – com todos os riscos de me tornar clichê, repetitivo, de tomar partidos, ser influenciado e por aí vai. É, precisamente, por riscos que escrevo. Tenho medo de ir para cama sozinho. Eu quero a liberdade de me deitar com quem quiser e de poder dizer depois se gostei (gozei) ou não. A perversão, simplesmente, faz feliz. Ocorreu-me agora essa frase que li em algum lugar. Lembro que a achei simples e feliz.

A minha escrita é também extremamente furiosa. Diria até atormentada. “É como ter loucura sem ser doido”. Visto-me qualquer coisa próxima de um escritor e assim ganho mais mobilidade. A língua fica de repente afiada. Tosca e desordenadamente afiada. Por favor, minha querida, não quero fazer disso um refúgio! Sei que não me lê assim. A escrita nunca me compensou ou substituiu nada. Ela é mais como um último recurso que mantenho. Um sopro de vida nesse nervosismo de mundo…

Saudades

D. L.

domingo, 6 de janeiro de 2008

D. L.,

Cá estou gozando também. Perversa e viva. Mais do que isso: precisando urgentemente experimentar de volta a loucura, o sonho, essa coisa agridoce que me provoca delírios raivosos. Raivosos. Vou confessar uma coisa: às vezes eu escrevo por raiva. Há quem escreva por amor - eu mesma o faço algumas vezes -, mas eu gosto mesmo é de escrever por raiva. Ela me escorre agridoce garganta afora, é uma delícia de se sentir. Sei que sentirá minha raiva ao ler. Não é contra você, saiba que não. Por você eu sinto ternura, sempre ternura. E é por ternura que lhe ofereço minha raiva toda, para que experimente-a com prazer.

Preste atenção, tenho um pouco de medo. É que tudo aqui explode e eu odeio. Simplesmente odeio. Odeio quem diz que o anoitecer existe pra que nos preparemos para uma nova exaustão no dia seguinte. Odeio quem não entende a graça da preguiça, do balanço do mar, de filmes antigos, de fazer amor, de olhar as estrelas, de colocar as pernas pro ar. Odeio quem acha que o valor do tempo se mede pela dor de cabeça que o tempo nos causou e que os felizes só o são por cometerem o pecado de terem tempo demais. Ademais, odeio quem fala mal dos pecados. Principalmente daqueles que são docinhos feito groselha.

Experimente, querido, apenas uma gotinha de mim. Amarga, não? É que andaram me puxando pra fora dos sonhos e... Pra dentro da caverna, quem sabe. Não quero bancar a filosofazinha sabe-tudo, mas odeio ver essas sombras na parede e ouvir gente-grande dizendo que, se não as entendo, é porque não estou olhando bem. Este é um pequeno protesto de criança: sou tão-somente uma menina, querido. Não espere mais de mim. O tempo passou, agora já me visto mais crescida e ando erguida. Até minha voz ganhou uma melodia mais grave. As letras, no entanto, ainda me denunciam. Digo outra coisa da escrita: ela diz mais do que o que deveria ser dito. Ela diz que ainda derreto feito doce de leite, que sou melada feito açúcar na panela e que, por mais que o tempo passe, eu jamais deixarei que a vida chegue antes de mim pra me contar os segredos. Assim são os orgulhosos: querem descobrir sozinhos.

Por isso eu odeio. Quem me dá a dor antes da hora. Quando for pra sentir, eu sinto. Quando for pra gritar, eu grito. E se for pra crescer, eu abro sozinha meus braços e espero que os céus os estiquem. Pro infinito.

Pro infinito, querido.

Com carinho e raiva,

Rebeca

Obs. Ainda me deve uma pequena resposta, uma resposta a uma antiga pergunta.