terça-feira, 14 de outubro de 2008

Aí mesmo, aí onde você está. Eu vejo seu risco louco, seu traço lindo, seu sonho-macho. Acredito em sua dor e em seu poder e digo: "Deus!", e você me cura. Aí mesmo onde você está, preso fora das grades, pedindo para entrar. Eu peço: "Não entre!" Que ao deus é exigido que fique fora. À loucura, que evite a tentação e seja dor. Mas eu tento. E de tentar eu me misturo a você, eu peco ao ser um pouco deus, e um deus errado. Não entre, amigo. Você, que é subversão do meu corpo, você que é torto, você que não exala as mesmas melodias douradas que eu aprendi a soprar, você que é vida, vida, vida. Você arde defumadamente insano. Estala o coração em abandono. Pede colo em palhaçada errante. Você palhaço, louco, santo. Em sua pele escura extensa viva, em sua história longa forte hoje, em seu olhar denúncia peso fúria. Você homem-mulher a abocanhar serpentes. Viril mordendo flores no sobrado. Pedindo meu amor lá na sacada. Me peça mais um pouco de segredo. Que eu seja mais um tanto sua santa. Me ensine a amar errado toda torta. Porque a vida certa não distrai. E eu finjo.

domingo, 5 de outubro de 2008

Desce, Bianca, desce
Afunda teu pé na lama
Beija a terra que te ama
Salta as pocinhas, Bianca
Brinca de chuva na relva
Brinca de relva nos sonhos

Sê jovem, Bianca, e brinca
Sê moleque de um pé só
Pula as estradas, Bianca
Amarra a saia da avó
Ri um riso bem feio
Escancarando alegria

Queima o chão
Risca a fazenda
Canta a beleza, Bianca
Canta o amor que não tem nome
E grita os nomes de deus
Molha os cabelos na chuva
A chuva que te destrói

Sê pedacinhos, Bianca
Porque ser inteira dói.

domingo, 21 de setembro de 2008

Amores, busco força.

Força. Força. Força. O que me abre é nada, queridos. Vejo-me aqui num vazio de sentido - esse vazio jovem e tolo, esse vazio que seria belo se os tempos fossem outros e o mundo não me exigisse uma resposta rápida: uma direção clara. É claro! Cristalinamente adulta. Confiável. Fiando-me na contagem de pontos que enquadram o certo no lugar do certo e o errado no lugar do errado. O resto vai para o limbo. O limbo das crianças. Nem céu, nem inferno. Cristalinamente adulta, devo agora escolher: lá ou cá? É turvo, é turvo. É um túnel infinito sem luz ou estrela. É minha pele estendida, cheia de poros. Minha pele arrepia amor. Amor que é turvo em dor. Melado em saliva. Doente, vivo, forte. Eu nasço às vezes, nas pontas dos meus dedos. Sou toda carícias. Água turva e feita de mel e ferrão. Abelha rainha matando tempo.


O limbo das crianças sem fé. Não tenho ídolos além de papai: ainda assim, prefiro ser edípica a ser besta. A berrar feito tiete diante de um poeta morto. Fio-me na contagem de pontos porque devo. Tenho quase pontos suficientes para subir um degrau, e mais outro. Peço delicadamente o amor dos acadêmicos: sou dona das palavras fáceis, por que não dominaria as difíceis? Domino. Domino porque sou agora dominada. Submissa. Só deus sabe. Só deus sabe o quanto é turvo mas também o quanto é necessário. Ou: quem é que vive se alimentando de sonhos? Da fé na boa família e na felicidade? Eu como e bebo um pouco do veneno diário que me faz subir aos céus e sentar à direita do deus poderoso que dita as regras do momento. Digo palavras confiáveis para gozar de um poderzinho de nada. Mas quero mesmo é casa, comida e todas as minhas lembranças guardadas numa caixa. Àqueles que com discursos falseiam o amor eu atiro pérolas, como aos porcos. Há muita majestade no mundo e é de fingir servir que a gente morre um pouco a cada dia. É de servir de verdade que a gente já morreu e não sabe.

Eu nado no limbo, queridos. E não há veneno algum num lugar tão longe do céu.

domingo, 17 de agosto de 2008

tontice
vive-se à maneira formidável contra humana pq morre-se de humanidade
humano é oposto de arte
exige boa saúde diagramaticamente imprópria
arte
se não mata ou engorda
adoece
cozinha à brandura duma febre
tolice...
vou drenar abscessos
volto depois.
O mundo é um aceno. Um aceno distante. Está bem ali, queridos. Fazendo formas mil. Inventando o jeito como a gente deve ser. Eu não me queixo. Sem uma coisa inventada a priori, eu jamais teria o que dizer. Nem palavras para tal. A borda do mundo me segura. As paredes do navio me prendem nesse balanço infinito e morno que me enche de vontade de seguir em frente. Rumo a. Àquele aceno distante. Logo ali, queridos.

Eu não me queixo. Preciso de um deus forte que me segure por um tal fio delicado que me mantém de pé. Meu deus dono e senhor puxa o fiozinho e então às vezes eu ergo a cabeça. Olho pra frente. Deixo descer uma lágrima que segue o caminho longo entre olho e seio esquerdo, seio esquerdo e umbigo. E depois some. E então minhas mãos são concretas. Fazem coisas concretas. Escrevem palavras e carregam coisas importantes. Trocam dinheiro. Dão e recebem. Entram em contato com a matéria e me fazem notar que tenho um corpo. E então minhas mãos são de fada. Acariciam bem. Devagarzinho. Num delicado milagre. Que quase ninguém percebe.

E então a vida é concreta. Não acena logo ali. Está aqui. Pouca, miúda, quase um nada. Mas vida. Em uma plenitude misteriosa que a gente raramente vê. Na maior parte do tempo a gente acha que ela acena. Logo ali, junto com o mundo. Aquele aceno vazio...


Com amor e em vida,

Rebeca

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

carta divã

A cabeça. A sentença. E então a morte. Eu ouço quando falam da morte e não acredito. É como se contassem sobre fadas cintilantes. É como se ficassem a cada dia um pouquinho mutilados e então inventassem pequenas lendas pra explicar que fim leva nosso corpo. Sou limpa, limpa, e moro numa casa limpa e ando em ruas limpas e sou toda inteirinha vestida de branco do pescoço aos pés. Mas minha cabecinha suja só me faz pensar em uma orgia de mutilados e em loucos cantando indecências rua afora. Minha cabecinha inventa um lamaçal de alegria e sugere que a beleza jamais seja tanta que não precise ser consertada, nem a feiúra seja um excesso que precise ser urgentemente descartado. Eu quero que tudo caiba. Na palma da minha mão. Nos riscos do meu destino. No desalinhar do meu caminho. Este caminho torto que eu quero consertar sempre. Pelo simples prazer de ser boa. Pela graça da descoberta. Pela ânsia de mostrar que sou mais do que um corpo pensante, humano, pulsante, que tenho mais do que aquela inteligência básica que me permite reconhecer cores e usar talheres. Eu quero a genialidade dos deuses, o poder dos trovões, a força da maior das ciências - ainda desconhecida. Quero ser acima da mulher, do homem e dos sexos todos. Daí que hoje, acariciando a morte e celebrando a vida, meu nome é inveja, desejo e glória. Hoje. Enquanto me esqueço, por uma brevidade, que sou tão-somente um bichinho, uma coisinha, uma alguém-aqui-apreciando-o-instante.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

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Ah não! Juro que tentei reclusa, em prece pedi para que ninguém fizesse barulho algum, que casa alguma fosse ocupada, sem luzes acesas, sem visita. Mas foi trazida até aqui e vi o ainda pulso em vida e quis gritar para que calassem!

Ah todo esse tempo e distância! Essa mudez fez com que eu entrasse em contato com coisas, meus queridos. Coisas essas que, de fato, não conceberiam que eu as tivesse conhecido isenta de goles ébrios.

Mas assim foi.

Descobri que dentro de mim há legiões angelicais e demoníacas. Os dois grupos juntam-se formando um grande Deus e um grande Demônio. E eles convivem aqui dentro, bem grandes e se alastrando por meus poros.

Nada disso me choca. Meu medo é não saber até onde podem eles alcançar.

E se meu excesso de Deus aflorar? Rasgar-me-ei de uma bondade a qual não quero. Deixar-me-ei livre de todos os caprichos e encantos que me decoram, terei de olhar-me feia ao espelho porque cultuarei uma beleza que de dentro pequenina transitará para o fora. Não quero! Não quero não me deliciar com os abusos, as cores, os cheiros e os prazeres. Não quero esperar complacente a diretriz de um mundo sem que eu possa girá-lo. Não!

Não quero me distanciar do que me faz humana e por isso peco deliciosamente. Mas se eu dele me desfizer? Se tirar todo esse Deus do dentro?

Só o Demônio, então. Até onde eu iria? Ah, cuspiria sem escrúpulos nas caras sujas dos que me sangram. Diria todas as verdades com palavras duras e nada rebuscadas até que visse escorrerem lágrimas de sangue em todos os outros que a mim olharam de maneira atravessada. Atropelaria todos que cruzassem meu caminho. Contaria os segredos alheios que guardo justamente para quem nunca os poderia saber. Acabaria com vidas e riria em gozo. Desmentiria todas as juras que são criadas para uma boa convivência. Não! Não posso assim ser!

Não quero me distanciar do que me faz humana e por isso não poderia ser assim tão cruel! Em meu peito dói um coração ao entrar em contato com as maldades do meu Demônio particular e não posso deixá-lo tomar conta de minhas cavidades todas e fazer de mim um inferno.

E agora que sei que assim sou? Sensível e incapaz de nortear até onde vai minha bondade e maldade tenho evitado quaisquer excessos.

Amar, sorrir, acolher, comer, beber, dançar, odiar, prazer, escrever, falar. Cada um desses pode me levar a uma bondade e/ou maldade desqualificadora de mim.

Só que sem esses excessos me perdi. Deformada estou por isso tranquei todas as portas e janelas, mas vi pela fresta a luz que vocês acenderam e já não sei se lhes agradeço ou mato...

Um sinal de quem não é mais Julieta.