quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Escrito simples e breve


A vocês,

Demorei sim, demorei a escolher a fantasia deste carnaval.

Como um bombardeio percebi que não sei o que, afinal, quero! Por isso a demora, por isso tanto pensar, até quando recolhia as pedrinhas da rua, assim como contava quantos carros amarelos por mim passavam. Nenhum.

Ah, envenenei-me com os próprios anseios. Nem notei que se o breve ainda não veio, se hoje florescem as árvores e amanhã eu piso em suas folhas secas, não sei o que quero por muito tempo. Só por agora e daqui um pouco, um pouquinho.

*

Ah os espelhos, as fotografias, minha imagem, minhas palavras curtas e simples ... são diferentes e não sei mais quem sou. Outra, talvez eu mesma ou aquela. E o que todos vêem?

Com amor de hoje, amanhã e depois,

Quem tomou para si ... Julieta ...

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Bilhete de fim de tarde



É breve. Amanhã acordarei já cansada, porque o dia começará sem mar, digo, sem espelho onde mergulhar. Fantasia é uma tolice, mas eu nunca soube outra coisa. Desaprendi antes mesmo de saber e envelheci bem antes de crescer, porque já tinha ânsias de voltar a ser criança. Passei a vida adivinhando o futuro e tendo uma pressa ao contrário. Sou um ciclo.

Descanse-me, Dorian, caso me queira bem. Junte esses seus dois espelhos e deixe que eu suma mergulhada num vão espelhado cheio de luzes e cores. Nem sinta saudades. O amor está lá do outro lado. Meu amor entre flores amarelas.

Sem mais,

Rebeca

De quem viu um menino vivo no espelho:

Minhas caras,

O que quero, afinal?

E se o mundo fosse todinho espelho?

Não seria. Porque espelho é a coisa parida mais emaranhada que existe. Calma! Espere um pouco... Agora acho que haveria apenas peso. É isto! se o mundo fosse inteirinho espelho haveria apenas excesso de peso.

Vou ensinar-lhes uma mágica: colem dois espelhos juntos, um refletindo o outro, e pronto: parimos um mundo inteiro e inconcebível. Isto é segredo de encantador. Dar à luz ao que não pode nascer. O que fica entre os espelhos é tão vasto e destruidor que vai devorando e devorando e devorando. Espelho é vácuo endurecido. Puxa... !

Mas eu que de mágico não tenho só os encantos, intui uma forma garantida de viver num nada duro e fundo. Nasci vidente. Eu, adivinho que sou, acho que estou entendendo agora como um mundo inteiro espelhado pode ser: bola de cristal é mundo-todo-espelho de mesa, é buraco todo cavado no nada de onde se tira tudo.

Estou boiando em silêncio no meio. Achei a leveza. Cair entre dois espelhos é um só Adeus!... Isso é também mistério de manicures e cabeleleiros: Quem não tem medo de reflexo que os acompanhe.

Dorian G.

domingo, 27 de janeiro de 2008

a uma Julieta (e a outros)

*
*
*
Enfim, entrego-me à loucura. Saindo da condição de perspicaz observadora, entrego-me às suas palavras, doce Julieta: você também sabe que minha intensidade acontece bem longe de olhares todos. Acontece à parte. No canto da festa, no escuro da razão. Não é a vocês que respondo hoje. É a mim. Porque minha vida é de uma intensidade que quase ninguém vê. Secreta. Rebeca é um sopro. Rebeca é uma cortina transparente, um véu de noiva. Uma florzinha vermelha escondida no mato. Digo-me hoje em terceira pessoa porque assim não me dói na carne que mal me sustenta:

Rebeca conhece, sim, esse amor bonitinho de bordar toalhas. E também vive o tal gozo queima-corpo. Arde. Certa vez um amante ressurgiu de uma gaveta de recordações. Um amante antigo. De nome Haroldo. E foi então que a coisa toda aconteceu: ele olhou para Rebeca com desejo e Rebeca recebeu o desejo. Nada de subterfúgios pra dar outro nome ao desejo. Não era mais aquela pureza dos tempos delicados. Era simples assim: ela diria: "vem, benzinho, que aqui tá escuro e ninguém vai ver..." E ele a tomaria pela cintura, tocariam-se bem embaixo onde tudo sempre começa. Não haveria amanhã. Fossem tão simples as palavras do gozo ("eu quero, tu queres?"), e não haveria motivo para um vocabulário tão extenso.

O amor aprendeu mais cedo essas sutilezas. Sim, Julieta, esse amor de bordar toalhas. Ele fala com olhos de menino, ri que ri e depois repousa no colo. Parece que o mundo inteiro é feito de borboletas amarelas. E não se engane: não é grandioso. É uma simples promessa: promete que o amanhã existe e que lá (no amanhã) você acordará tendo uma mão firme na sua mão e alguém que amará a toalha bordada por seus dedinhos feridos pela agulha fina. Esses dedinhos delicados sangrando assim.

Chame o amor como se cantasse em uma língua desconhecida. Deslize. E chame o gozo, busque-o sem pudor. Diga que quer. Peça com um pouquinho de safadeza, diga palavras que não escreveria num texto bonito - palavras que só podem ser ditas no escuro. Mesmo que esteja bem claro. Esses dias eu diria que às vezes é necessário queimar os olhos. Levar o ardor dos sonhos pra uma realidade concreta. O príncipe das telas de cinema para o corpo do homem que dorme quietinho ao seu lado. Todos os amantes do mundo para a sua cama. Em sonhos aguantes de quem sabe que o desejo maior é irrealizável e, mais que isso, menos desejado do que nos parece.


Vocês querem o que, afinal?

*
*
*

Com amor,

Rebeca

Meu amado,

Parece que não dou sossego para suas palavras, logo respondo como num respiro descompassado, e sabe por quê?

Ah, é que sua aflição, seu gozo preso por entre os músculos, seus sentimentos genuínos, ou não, me carregam para um alto de penhasco-mãe. Um lugar onde me sinto responsável por sua vida e nela gostaria de ao menos embalar cantigas reconfortantes para que seu sono seja tranqüilo e que as manhãs jorrem café forte e quente.
Nego-me a pensar na possibilidade de que seja atropelado pela fome canibal das feras que nos tolhem os mais secretos desejos. Sonhe.

Permita-se sentir, nem que em coleção de raros momentos, a alegria da criança que é dona de poucas, mas preciosas pedrinhas recolhidas ao longo do caminho e deixadas no bolso até o esquecimento.

Não se engane meu amor, mentira dos que dizem que a febre é defesa do corpo!
Esse alvoroço não doença, é o sinal de que é chegada a hora de não ter chão, portanto, não se preocupe, não terá mapa algum que melhor lhe aponte o rumo do que a boca em que se beijam as palavras que tanto procura e escapam.

Não acredite que eu entendo do que nesse momento lhe sussurro. Não vivi intensamente nada que possa parecer digno de entender tais mistérios, mas minhas entranhas é que de maneira sutil ditam essas linhas contorcidas e chego a acreditar no que digo...

E se as contrações de um parto são dolorosas, o seu riso que apenas eu capturei – o que tenho guardado feito fotografia na alma; aquele que você não sabe que faz e muito menos como faz – abranda a dor e se quiser permito que nasça quantas vezes for preciso e cedo meu corpo, meu útero intacto, só para que sorria novamente.

São tantas as coisas que queria te dizer, mas escapam dentro de minha caixinha de costura e levam consigo todas as agulhas que nunca encontro para pregar botões ou quem sabe as flores bordadas para um novo amor (Ah Rebeca, sei que me nesse instante me lê e reconhece).

O que de fato não me falha agora é a visão que tive, confia em mim? Acompanhe-me neste vestígio de vida.
Caminhava por entre ruas por debaixo de gotículas finas de um fim de dia qualquer, passava por entre casas e observava a vida e os signos por entre as janelas que insistiam em abrir, mesmo com o clima não tão agradável. Em apenas uma janela, vasinhos pintados com a mais florida paisagem, como se a primavera perseverasse. Não estava só, mas sim, junto sua mais cúmplice companhia – seu coração, seu domingo nublado, seu filme francês, sua canção ao pé do ouvido – e colocavam à mesa xícaras e um bolo quente de fubá. Olharam para o lado de fora e a mim encontraram e num aceno chamavam-me para dividir tal tarde de inverno.

Não tema, aprenderá...

Não tema, já está tudo pronto escondido em algum canto ainda secreto, inclusive o chá que tomaremos na tarde sonhada.

A quem de tanta paixão, num lapso, denominou-se Di, com amor que invento a cada santo dia,

[T.H.]

Pequeno bilhete


Minhas queridas,

Andei um pouco em torno do mesmo ponto. Foi assim que me senti, mas agora também sinto que avancei.

Entretanto, quero ver com vocês uma coisa:

Carlos é de nós três o mais medroso. Com seus vinte e poucos anos, tem medo que a água do banho leve embora o seu cheiro. Por isso, Carlos esfrega roupas suadas pelo corpo todo após o banho. O que considera um ato de higiene heróica.

Conseguiram ver? Que armas temos nas mãos, não? Em três linhas criamos um banheiro, um banho, um cheiro – uma vida. É por isso que me movo com cuidado entre as palavras. Azar o meu que sou estabanado de natureza.

Hoje não estou aqui porque “preciso”. Resolvi fazer algumas anotações e cá estou. A minha língua se enrola hoje em um excesso de palavras, logo hoje que quero tanto ser menos. Vim ofertá-las a quem quer me leia agora neste curto bilhete.

Jéssica é menina mimada, cresceu entre bonecas Barbies e muita comida. Hoje quase adulta fora de época, Jéssica desce pelos elevadores do prédio fazendo poses para uma câmera que imagina existir. Fica puta quando tem que usar as escadas.

Mais uma cena inteira.

Beijos

D. L.


sábado, 26 de janeiro de 2008

Minhas queridas pervertidas (ou apenas minha querida),

De já uma pausa! Preciso respirar profundamente antes de dar seqüência às palavras que me acontecem agora.

Pronto.

Não sei como é para vocês, mas escrever sempre me força à postura (já escrevi isso em outro lugar – mas me ajuda a começar agora). Ponho o quê?

Antes de qualquer coisa, quero meter o corpo. Escrevo a vocês inteiro, meus amores, aos pulmões arfantes. E nisso está incluso “aquilo” em mim que só existe como captura e não como captado. É sempre um exercício de linguagem, o qual levo a cabo muito cansado e dolorido. E a dor é sempre a dor de um parto. Sempre tento chegar desse modo. “Você que me lê agora me ajude a nascer”!

Cá estou gozando. Despertei queimando esta noite e é também porque preciso que estou aqui. Em que estado de corpo? É sempre em apaixonamento. Meu corpo cozinha todo em uma febre branda e então amo. É um tal apaixonamento que borbulho por dentro e minha respiração fica assim, descompassada.

Pulei da cama esta noite em desvarios de febre-amadora para criar um corpo junto ao meu que me devolvesse o pulsar do tempo.

Mais uma pausa! Respirar ficou difícil.

Há quase uma semana perdi meu rosto. Estou em carne viva-apaixonada e me recuso a olhar no espelho – existe um menino vivo lá dentro, como pode?. Por um desatino de ardência morna precipito meu corpo. Preciso inventar um rosto-a-dois já - uma face comum.

Preciso de um mapa para me orientar, minhas queridas. O meu corpo é repuxado para frente, para trás e para os lados. Amo de longe. Sou tão simples e sem mistérios. Nunca precisei estender tanto a pele para chegar em algum lugar. Mas é sempre Uma Aprendizagem, Lóri - ou o livro dos prazeres.

Perdi meu rosto e pela primeira vez não estou assustado. Estou em uma ternura-febril: tenho que inventar tudo, aprender a me guiar nisso que me aconteceu de mais alegre. Estou a ponto de inventar-a-dois o tempo, o espaço, a presença, o sabor, o beijo – o amor. E a invenção dói a dor de uma distância que preciso reinventar para me aliviar as contrações desse parto.

Meu corpo treme todo de desejo. Assim, de repente.

E então sinto com toda a certeza deste corpo que não estou conseguindo. Amar só é fácil pra quem teve muito carinho. Inventei um amor em que preciso acreditar agora – como um último suspiro em vida. Mas como é que se acredita no que é inventado? E isso me corta o coração.

Apelo então para a aprendizagem. Tento apreender “isso” que brota em mim e aprender a me guiar por ele-a-dois. Assim porque quero tanto, quero já e da forma que me puder ser. E desse modo, aprendendo, vou sentindo tudo mais junto. O tempo pulsando no meu punho. O mapa ganha um novo desenho. E instantaneamente tenho um gosto, um cheiro… um beijo.

Preciso respirar novamente. Não consigo achar mais as palavras.

Agora sim,

Eu que me apaixono angustiado preciso achar “com” o ponto nevrálgico da ternura. Precipito meu corpo e sinto que posso cair no instante que se sucede. Mas aprender é o que não me deixa sozinho. Como um cabo que me suspende e me poupa do abismo. O rosto-a-dois ganha então uma consistência à moldar. Papel marché de carne-viva-apaixonada.

Aprender exige de mim tempo, e só posso passar por ele “com”, jamais só. Há alguém que segure minha mão? É isso o que espero da alegria.

Uma faceta conjunta, é o que desejo inteiro agora.

Com febre e rosto úmido...

Di

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

É porque eu preciso - pensei logo que vim escrever para vocês. É porque eu preciso. Uma vontade de gozo infinito, um sonho de amor cotidiano - trazem sem pudor essas oferendas, lançam-nas aos nossos escritos e nem imaginam o que provocam. Sequer sentem medo de que eu me perca em suas vontades quase minhas. E eu, cuidadosa que sou, penso em infinitas formas de realizar o desejo de cada um. Queria ser uma fada. Levar aos aposentos dos fundos um leão que ruge de sede; à mesa de centro da sala, linha e agulha pra bordar florzinhas pro novo amor que vai chegar - e entregar a vocês esse lar de loucuras. E a mim, Deus meu: a mim nada trago, nada peço, nada insisto. Tenho é medo. Daí que é mais gostoso olhar e tentar desvendar os desejos de vocês. Faço com um talento inquestionável: eu não preciso supor, eu já sei. Do outro eu sei cada pedacinho, cada detalhe, como se pudesse mergulhar em suas vontades e apreender o bicho, a menina, o homem, a mulher e todas as cores preciosas de seu destino. Sim, queridos: leio a palma de cada mão de vocês. E leio também outras linhas que vocês ingenuamente me trazem.

Leio tudo. Enxergo o violeta infinito que é a vontade de gozar de amor. Reparem, eu nunca estou muito perto: é preciso uma certa distância pra apreciar. Amar de pertinho é raro, é coisa de muita, muita sorte. Em cada lugar que me encontrarem verão sempre a menina prestes a. A ponto de. Mas nunca lá. Estou sempre à beira, à espreita, rastejando infinita esperando o momento de me erguer. Temo pela escrita de vocês porque, ainda que eu saiba que não há na Terra uma alma que seja idêntica a qualquer outra, assusto-me com a idéia de que um de vocês porta meu gozo úmido e quente de leão e o outro, minha história de mulher (minhas duas almas). Peço, então, encarecidamente - pela sutil sanidade que ainda me resta - que sejam reais. Goze, Dorian. Ame, Julieta. E riam juntos enquanto eu sigo meu caminho torto, ao menos certa de que não delirei e de que vocês não nasceram de meu ventre de papel.

Com ternura e alma,

Rebeca

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008


Meus caros,

[Às escondidas já troquei cartas com ambos. Rebeca, espero que não tenhas te esquecido de que admiti ainda ser moça que só escreve à pena, tinteiro, borrão e que obviamente sai do salão em noite de baile na esperança de que o amor se aproxime sem aviso. Ah D.L., a ti todo meu desconforto coloquei, de forma simplória, como fragmentos de letras dispostos em linhas e mesmo assim não consegui.]
Meus dedos não mais acompanham o que ditam minhas sinapses. Elas são tão complexamente distantes das orações simples que eu gostaria de escrever. Já é tudo tão denso que não tenho forças para historiar sobre o que sinto, gostaria mesmo é de escrever sobre o que observo.
Não consigo. Ao observar, dispo-me, envolvo-me, perco-me das constelações e do cheiro das florestas. Sou obscena. Não tenho vergonha, esqueço que sou observada e encaro feito criança frente a um pote de guloseimas vermelhas. É complexamente simples e assim não sei dedilhar, não sei me expressar.
Se amadora, por ter como guia o amor, não quero mais dele falar como sendo algo que mesmo ao propor as palavras mais esmeradas de um dicionário qualquer, não abrangerei sua completude, mesmo se me curvar de tantas sensações e sabeis por quê? Descobri que o amor é simples, meus caros, tão simples que o dizer como taquicardia já é demasia.
Por isso queria tratar de amores assim – serenos – talvez por isso nunca mais tenha escrito, não os alcanço. Apresentam-me apenas vastidões, monstros e catedrais, mas nada tão simples como cheiro de sabonete em pele fresca e farelos de pão em toalha estampada. Quero delinear em sílabas as estampas do vestido campestre e não dizer da dor que afugenta.
Cansei de fonemas duros e amargos e de confundir idéias alheias e próprias com a dura separação dos hiatos...
Sou acentuada, uma proparoxítona, mas que de fato procura apenas monossílabas atônitas para falar de amor e para se dirigir aos vossos olhares.

Com reticências,
[T.H.]

Minha querida Rebeca (ou Minhas caras segredistas),

Esta foi bem difícil, rapidinha e feita nas coxas mesmo...

Há dias venho batendo o queixo desde que li a nossa última carta, mas somente hoje acordei com a língua afiada. O que tenho aqui ainda não é uma carta, é apenas uma grosseira costura de nossas idéias. Conheço você por partes, minha querida, por viver você fragmentária. É assim que me chega sempre, aos pedaços. Juntei aos nossos trapos as idéias de uma amadora que, em plena madrugada, endereçou-me algumas palavras. É também a forma que encontrei de incluí-la nesse nosso instante de gravidez.

É pavoroso!, mas compartilho de um segredo: ando sofrendo ataques de indelicadeza com a aspereza do mundo. O mundo me deixa nervoso e eu ainda não sei o que fazer com isso. Estou cansado. Cansado dessa minha doçura embrutecida. Tentei abrir meus braços para cima e crescer, mas o que consegui foi um tremor nas coxas. A suavidade pode ser também de uma languidez pegajosa que,… Ah meu deus!, preciso dessa nossa vertigem que é escrever. Perverso e vivo – e por enquanto, desse jeito mesmo.

Um dia ainda escreverei cartas apaixonado. Mas acho que nunca deixarei de escrever desejando conseguir alguma espécie de organização. Uma ordem mínima que seja, mas que me faça passar pelo instante. É bem isso que você disse minha querida, uma organização que seja para que eu possa voltar a sonhar. Ou mesmo dormir, amadora.

Quero simplesmente respirar. E não aprendi a fazer isso sem ser me apoiando. Sem ter mãos para segurar. Perverso e vivo – com todos os riscos de me tornar clichê, repetitivo, de tomar partidos, ser influenciado e por aí vai. É, precisamente, por riscos que escrevo. Tenho medo de ir para cama sozinho. Eu quero a liberdade de me deitar com quem quiser e de poder dizer depois se gostei (gozei) ou não. A perversão, simplesmente, faz feliz. Ocorreu-me agora essa frase que li em algum lugar. Lembro que a achei simples e feliz.

A minha escrita é também extremamente furiosa. Diria até atormentada. “É como ter loucura sem ser doido”. Visto-me qualquer coisa próxima de um escritor e assim ganho mais mobilidade. A língua fica de repente afiada. Tosca e desordenadamente afiada. Por favor, minha querida, não quero fazer disso um refúgio! Sei que não me lê assim. A escrita nunca me compensou ou substituiu nada. Ela é mais como um último recurso que mantenho. Um sopro de vida nesse nervosismo de mundo…

Saudades

D. L.

domingo, 6 de janeiro de 2008

D. L.,

Cá estou gozando também. Perversa e viva. Mais do que isso: precisando urgentemente experimentar de volta a loucura, o sonho, essa coisa agridoce que me provoca delírios raivosos. Raivosos. Vou confessar uma coisa: às vezes eu escrevo por raiva. Há quem escreva por amor - eu mesma o faço algumas vezes -, mas eu gosto mesmo é de escrever por raiva. Ela me escorre agridoce garganta afora, é uma delícia de se sentir. Sei que sentirá minha raiva ao ler. Não é contra você, saiba que não. Por você eu sinto ternura, sempre ternura. E é por ternura que lhe ofereço minha raiva toda, para que experimente-a com prazer.

Preste atenção, tenho um pouco de medo. É que tudo aqui explode e eu odeio. Simplesmente odeio. Odeio quem diz que o anoitecer existe pra que nos preparemos para uma nova exaustão no dia seguinte. Odeio quem não entende a graça da preguiça, do balanço do mar, de filmes antigos, de fazer amor, de olhar as estrelas, de colocar as pernas pro ar. Odeio quem acha que o valor do tempo se mede pela dor de cabeça que o tempo nos causou e que os felizes só o são por cometerem o pecado de terem tempo demais. Ademais, odeio quem fala mal dos pecados. Principalmente daqueles que são docinhos feito groselha.

Experimente, querido, apenas uma gotinha de mim. Amarga, não? É que andaram me puxando pra fora dos sonhos e... Pra dentro da caverna, quem sabe. Não quero bancar a filosofazinha sabe-tudo, mas odeio ver essas sombras na parede e ouvir gente-grande dizendo que, se não as entendo, é porque não estou olhando bem. Este é um pequeno protesto de criança: sou tão-somente uma menina, querido. Não espere mais de mim. O tempo passou, agora já me visto mais crescida e ando erguida. Até minha voz ganhou uma melodia mais grave. As letras, no entanto, ainda me denunciam. Digo outra coisa da escrita: ela diz mais do que o que deveria ser dito. Ela diz que ainda derreto feito doce de leite, que sou melada feito açúcar na panela e que, por mais que o tempo passe, eu jamais deixarei que a vida chegue antes de mim pra me contar os segredos. Assim são os orgulhosos: querem descobrir sozinhos.

Por isso eu odeio. Quem me dá a dor antes da hora. Quando for pra sentir, eu sinto. Quando for pra gritar, eu grito. E se for pra crescer, eu abro sozinha meus braços e espero que os céus os estiquem. Pro infinito.

Pro infinito, querido.

Com carinho e raiva,

Rebeca

Obs. Ainda me deve uma pequena resposta, uma resposta a uma antiga pergunta.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Escrever - A/C de Rebeca

Rebeca

Voici notre lettre #2!

E desta vez sem desculpas, a não ser a de desviar nossos assuntos da beleza para esses mesmos riscos pelos quais desliza os olhos agora. É que tenho um segredo tão grande que nem consigo me conter. É como se ele exigisse (a) língua ou, pior, como se escorresse pelas pontas dos dedos compondo palavras soltas onde quer me atreva a empunhar o lápis ou canetas. Desta vez não irei segredar sobre a beleza dos corpos masculinos, quero falar de corpos escritos, corpos literários. Corpos Escrituras.

Acordei hoje com uma vontade de ser lido.

Tenho um segredo tão grande que ando até mais pesado e desajeitado. Não sei nem como contar essa minha perversão, ultimamente venho cometendo compulsivamente o pecado da gula. É que descobri uma nova delícia: escrever. Na verdade foi uma descoberta muito simples aprendida absurdamente de uma forma que outra senão a da leitura. Lendo qualquer coisa: livros, cartas, fotos, conversas, gemidos, verbos, sussurros, gestos e trejeitos. Foi lendo que também deixei marcas escrituradas. Tanto em mim quanto nesses outros corpos que, neste momento, nem sei por onde andam... ou mesmo se ainda andam, é que comecei devorando-os pelos pés.

Acho lindo como as palavras se dispõem pelo papel. Uma vez, li em algum lugar que escrever é uma perversão. Bem, sobre isso, posso afirmar que é uma satisfação escrever. Gozei!!! e por isso, se estiver fértil, cuidado ao manusear estas páginas se não quiser ficar grávida. E, se não quiser mesmo, melhor até deixar esta carta de lado e retoma-la apenas quando achar que estiver pronta.

Ando me sentindo bem clariciano, é que essa delícia é também a minha quarta dimensão: a palavra. Inventei ontem que tenho necessidade delas. Hum, como pude fazer isso comigo? Criei uma dependência... que louco eu, não? Não! O que importa menos aqui são as palavras, mas os cheiros que elas fazem passar. Uma doçura de traição. Neste momento as linhas da folha exalam cheiros em resposta aos olhos deslizantes. Você sente? Eu sim. E o gosto? Todos os cheiros também têm gosto, sabemos disso com os aromas muito acentuados. A mesma pessoa que me disse que escrever é perversão, disse em outro lugar que as palavras têm sabores, que são salgadas (e isso não é pejorativo).

Neste momento fico pensando, que gostos têm a nossa remissiva de cartas? Quais perfumes fotografamos nessas páginas? Duas sérias-tolas perguntas e uma pretensão minha, já que sem elas não escreveria nada. Pelo menos nada de que gostasse (nada com gosto (com gozo)).

Bem, foi desde então que me entreguei a essa “glutonisse”. Uma gastrografia que consiste em provar as palavras e esboçar sabores quando preciso ou não. Arranjar um texto de tal forma a fazer passar um perfume. É isso o que importa: a passagem. Se nada passa, não tem gozo e o texto é frígido.

ESCREVER – PERVERSÃO – GOZO – SABORES. De um tempo pra cá venho achando meus textos muito orais. Escrever com a boca. (psicanálise que insiste em passar)

Escrever me faz tão mulherzinha (essa expressão tão sua, agora nossa). Deixe-me explicar. Compreende que estamos engendrando corpos (?), ou melhor, que me encontro agora, junto com você, em um instante tão maternal, tão grávido de cheiros (Eu não, mas o instante, do contrário isso seria uma estratégia de profundo egoísmo), que escrever é um último recurso para conferir consistência e sabor literário (corpóreo) aos aromas. Escrevo por um golpe de angústia, digo isto com toda certeza obrigado pelo desespero que me causam o meu corpo e o porvir desse corpo”[1]. Desesperadamente férteis a endereçarmo-nos corpos para fazermos o que puder com eles.

Pausa para um comentário: Corpo é uma palavra que escrevo de boca cheia. Fim do comentário.

Preciso roubar mais dois fac-símiles de livros, se me permite:

"Escrever mal, dever contudo escrever, se não se quiser abandonar-se ao desespero completo"[2]. O desespero de um corpo como palco. Aflição! Aflição! Aflição! "Não escrevi nada hoje e, tão logo deixo o livro de lado, sou imediatamente assaltado pela insegurança que, como um espírito mau, se segue a não escrever"[3]. É como se o mundo escapasse de si mesmo “por entre os dedos”.

Escrevo por uma necessidade e não por um impulso, e este será aqui o meu último golpe violento deixando qualquer clareza para a retórica, já que não escrevo para você ou por mim. É por isso [uma necessidade] que escrevo angustiado, i.e., escrevo in-tensamente – nota: favor enfatizar o prefixo!! Acho que é isso que dizem quando falam que o texto carrega intenções. Como escrever sem fazer passar as tensões de um corpo? J’écris comme un opérateur. O meu modo é escrevendo, a linguagem é para mim uma pele: “esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo”[4]. É porque ando tentando chegar onde quer que seja, correndo de lugares em lugares em uma folha de papel, que tento criar aqui aberturas, como que "estendendo" a pele para que se abram mais poros por onde possamos entrar e sair, ou ainda oferecendo a mão para que possa segurá-la. “Dá-me a tua mão…”.

E agora chega!, o que tinha que passar, foi-se...

D. L.

Ps.: Tout ceci doit être considéré comme dit par un personnage de roman.

Ps2.: Vou precisar de uma outra carta para definir melhor isso que chamei de "gastrografar".


[1] KAFKA, Franz. Diário íntimo. Rio de Janeiro, 1964.

[2] KAFKA, Franz. 1912 em uma carta – não lembro de que livro isso veio, mas creio que consiga achar na internet.

[3] Este trecho veio roubado de segunda mão do livro LIMA, L.C., Limites da voz: Kafka. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

[4] BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso – Trad. Hortência dos Santos. – Rio de Janeiro: F. Alves, 1986.