terça-feira, 26 de fevereiro de 2008



É silêncio ainda. Só que agora é silêncio de saudade. Saudade de mim. Dê-me um tempo. Um tempo entre eu e eu. Ela e eu. Eu e ela. Nós duas. Pois vou explicar agora porque não sei ser artista: é que tenho tanto medo de me perder, que acabo evitando sair de mim. Então, evito o moleque das pipas que avança ligeiro na sola do meu pé esquerdo, finjo não enxergar a puta que sacode minhas ancas e escondo nos pulmões o grito de princesa mimada. Se eu fosse despedaçada e forte, sem medo de me perder, confessaria absurdos como a vontade louca de criar todas as leis do mundo e de ser amada por todos os Reis do mundo. Nasci mulher, querido, e, por medo de um dia passar debaixo do arco-íris e me tornar menino, decidi ser menina até a raiz dos cabelos: frágil e delicada tal e qual asa de borboleta. É que não quero que Deus -notando algum vigor em mim - resolva me arrancar os encantos de pele e curvas. E meu gozo fundo e infinito. Pela mesma razão, não sou sábia: quero jamais ter rugas.

Mas isso, meu caro Dorian, é um drama antigo e não é meu. Pergunte às feministas, às fêmeas, às damas. Nada de novo sob o sol. Sou aquilo que às mulheres foi dado pela história: uma dúvida, um quase, um fundo. Um depois. Travo pequenas guerras. Nada artísticas. Socos no ar. Não fazem encantos, graça ou sentido. Já lhe disse que não sou artista nem sei ser. Artista inventa beleza no torto. E eu quero ser bela e reta: quero seguir o que não falha. Quero ser terrivelmente bela. Quero não ter manchas, marcas, máculas. Quero nunca ser traída, jamais trair, furtar ou matar. Desejo manchar o lençol de vermelho na noite de núpcias e quero cuidar dos doentes. Não sou artista, Dorian. Fui parida num sonho feminino e desde então minha mãe e amante exige que eu seja o que seus instantes pedem. Hoje o instante dela é duro. Caminha feito dama sobre os ponteiros do relógio. E não permite que eu seja moleque, puta ou bicho. "Somos o que somos" - ela diz, e o instante completa, submisso: "E não há o que se possa fazer."

Minha mãe e amante adoeceu. Amanhã acordarei e ela estará tirando poeira do vidro da mesa de centro da sala. E eu acho lindo. Eu acho o tédio sempre, sempre lindo, Dorian. Não sinta pena: não sei ser artista porque amo ser escrava. E hoje ela exige de mim o silêncio, o frio e uma vassoura que alcance as teias de aranha no teto.

Aranha faz um trabalho tão perfeito, não? Deve ter mãos de fada... Ou coração de escrava...

Com carinho,

Sua e de quem quiser,

Rebeca

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Pensou que eu não vinha mais, pensou? Pois vim e trouxe comigo o Chico. É que não sei falar de tempo ainda, ando embananado demais com o instante, que é de outro tempo. Sinto que o instante é mais vasto: nele, que ainda não achei o termo próprio, cabe muita coisa não só ao mesmo tempo, mas numa variabilidade terrível dele. Isso sei simples, sei sem explicação. E se não fosse assim já teria sabido. É uma daquelas coisas que só se chega ao conhecimento em Deus, ou é Deus que chega ao conhecimento em mim? No instante tem muito e pouco tempo. Disseram-me uma vez que o instante é tão agora que por um triz não é futuro. Vivo com você sempre na iminência de: . Abarrotado de coisas, às vezes beiro a loucura. Passo a palavra agora para Chico.

Tempo e Artista

[Chico Buarque – in: Paratodos]

Imagino o artista num anfiteatro
Onde o tempo é a grande estrela
Vejo o tempo obrar a sua arte
Tendo o mesmo artista como tela

Modelando o artista ao seu feitio
O tempo, com seu lápis impreciso
Põe-lhe rugas ao redor da boca
Como contrapesos de um sorriso

Já vestindo a pele do artista
O tempo arrebata-lhe a garganta
O velho cantor subindo ao palco
Apenas abre a voz, e o tempo canta

Dança o tempo sem cessar, montando
O dorso do exausto bailarino
Trêmulo, o ator recita um drama
Que ainda está por ser escrito

No anfiteatro, sob o céu de estrelas
Um concerto eu imagino
Onde, num relance, o tempo alcance a glória
E o artista, o infinito.

Beijo de quem vibra em vossas mãos.

D. L.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

De tempos em tempos...

O tempo me pediu um tempo. Há alguns dias era eu quem sofria de ansiedade diante do silêncio. E agora o silêncio me conta segredos do tempo. Vou contar:

O Tempo certo dia acordou cansado. Rastejou a manhã inteira à espera de uma luz. Era uma manhã surpreendentemente escura. Sem Sol. E o Tempo, assustado, compreendeu que não era ele quem fazia o Sol se erguer detrás do morro. O Sol, o mato, as aves e o nascimento dos bebês: tudo isso seguia independente do Tempo, no caminho torto do devir. Nasciam bebês porque homens e mulheres copulavam e depois as mulheres esperavam vários meses de corpo em transformação para, enfim, a nova vida (talvez) acontecer. A vida sempre quis acontecer, e pouco se importava com o tempo. E, se um dia a vida inventasse de parar - o que me parece impossível - o Tempo continuaria seguindo em círculos, rumo ao nada e ao nunca mais. Porque também a morte independia dele e estava visceralmente ligada à vida. Foi por isso que, quando a luz não veio, o Tempo se fez perdido e fraco, insistiu para morrer ou para voltar a ser dono do mundo. Acontece que aquele Tempo era meu. Cada Tempo tem seu dono e a ele se submete sem saber. Meu Tempo de repente teve pressa. Medo do escuro. Vontade de não sei o que. Meu Tempo acelerou porque assim ele e eu desejamos. E quando, enfim, o Sol se ergueu, meu Tempo pediu um tempo.

Hoje, queridos, não é que eu esteja sem tempo. Na verdade, há sempre algumas horas ou pequenos minutos que nos servem muito bem para uma carta, um afago, uma olhada de relance para o espelho. Mas a verdade é que nada disso eu andei fazendo. Não pude escrever porque as palavras me saíam duras como o relógio concreto do horário comercial. Os afagos eu guardei no coração, porque tomei certa aversão ao excesso: todo amor do mundo se converteu em falsidade, melodrama, cena de novela da TV. Eu não assisto televisão. Sou de outro tempo. De bordados e tricôs. Acordei velha há alguns dias. E só faço envelhecer mais e mais. Por isso também evitei o espelho.

O prazer me aconteceu algumas vezes: pegou-me de surpresa. Sempre acho que o prazer tem gosto e cor de groselha. E cheiro de cereja. Ou de frutas tropicais. O prazer tem um suco de cores que se transformam. E faz cócegas na garganta. Mas foi breve. Foi então que Romeu Montecchio perguntou onde estava Julieta Capuleto. E então eu soube novamente - pela terceira vez na vida - daquela verdade repetida e clichê: esses encantos excessivos só se eternizam na tragédia. Julieta viva é Julieta Qualquer. Pode ser chamada Maria, Cecília, Beatriz ou Dulcicleide. Julieta viva sou eu. Com planos, sonhos e cansaços de mulher comum. Nada trágico, é tão-somente o tédio. Não uma adaga no peito ou um veneno de mentira: só uma preguiça de fim de tarde e vontade de descansar nos braços de um irmão-amante. Mortal, moral, espelho ordinário de outras tantas vidas. Feliz nas sutilezas.

Pergunto a vocês: pode o amor ganhar novos nomes e diferentes cores? E pode o Tempo ter paciência diante do amor-ordinário? Meu Tempo sossega enquanto ainda é tempo. E eu ainda acredito que um enlace de pernas entediado de uma tarde pode inventar doçuras de groselha e gozo. Amor brincante.

Brincando sem rumo, cansada e viva,

Rebeca

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

,


Por medo escrevo.

Tive medo de que não mais me matasse, Rebeca. Ninguém no mundo além de você me apunhala assim. Você me presenteia com a possibilidade do que ainda não havia vivido, com algumas das restantes vidas de um gato sem raça. Espero que eu tenha mais de sete.

Minha mãe, hoje mesmo, contou-me um segredo enquanto arrumávamos os copos cotidianos como se fossem cristais (esses só para os dias de festejo). Contou-me que vez
ou outra deveríamos conversar com Deus e pedir que morrêssemos agora para então re-viver no próximo instante do agora.

Você é Deus, Rebeca? Infiltra-se da célula mais superficial da pele, até a mais escondida dos meus átrios e num golpe mostra que se só de pão consigo existir, devo então lutar por mais. Só pão não me basta.

Obrigada por me fazer entender.

Obrigada por ter ouvido sua voz mais de perto do que quando leio suas cartas, sim, sou eu quem leio, mas sua voz é quem dita em meu corpo estremecido os venenos que me concedem a vida.


Peço desculpas a vocês pela demora a escrever. Passou por mim uma brisa sombria que soprava gelo. Vislumbrei palavras congeladas e não queria que as minhas assim ficassem. Tive pavor de que elas se tornassem algo diferente dos gestos que nunca são iguais apesar de quando em cartaz sejam encenados milhares de vezes. Eles são únicos, eles têm som, textura, cor e gosto.

Quero que minhas palavras sejam assim, sei que não as tolheriam, nem fariam delas ponto final, mas por zelo as guardei em uma caixinha de madeira atrás do guarda-roupa. Só depois percebi que eu mesma as sufoquei.

Sinto-me à vontade em agora dizer: “Odeio os Montecchios”, sei que entendem todo o movimento dessa frase, bem como, quando digo que amo.


Com todas as vidas que terei e minhas tolas e simplórias palavras,
Julieta

Paranoiando



Não tenho tempo para esperar, peço desculpas. Suas demoras alimentaram minha paranóia - ou eu ainda não havia contado? Não havia contado, então, que sofro de um medo absurdo dos inimigos que me perseguem naquelas horas em que meus amigos faltam? Pois bem, conto agora. Não me envergonho. Não há quem não tenha um inimigo, nem que seja daqueles sutis, escondidos, velados - inimigos que sorriem. Eu me tremo toda por causa de inimigos que sorriem. Não um Romeu Montecchio. Montecchios e meninos-amantes nunca foram inimigos. Por Deus, Julieta, você bem sabe disso. Sua mãe já deve ter contado aquele segredo: os maiores inimigos são mulheres. Sabe como? Essas, querida. Inimigas íntimas. Cheias de doçura. Sou uma delas - uma de nós, e agora deixo Dorian de fora desse nosso segredo (embora eu saiba que ele haverá de ler).

Preste atenção: Não digo de inimigas de seus ideais de vida, suas visões políticas ou qualquer coisa assim. Essas são inimigas simples, claras, retas. Digo das outras. Digos de quando são inimigas da sua nuca-à-mostra, da sua pureza, de seus orgasmos, ou, quem sabe, do amor que lhe dedicam as crianças, os homens e os passarinhos.

Tenho, pois, uma inimiga. Ou algumas. Dessas inimizades mesquinhas mesmo. Não me dou bem com os tornozelos de rainha de uma delas e, por vingança, faço com que ela brigue para sempre com meu ventre em chamas. Frígida e bela, aquela. Cor de gelo e cristal. Outra já não suporta minha sutileza: exige de mim um grito de gralha. Dou a ela vinho, violino e uma frase em francês. Provocação. É que odeio nela a altivez, a força e o nariz-fininho-em-pé. Dá ordens como uma rainha má. E todos se curvam - se por amor ou por medo, pouco importa, são delas rendidos. Não meus.

Há outras. Essas mal sabem. Passam diante dos olhos dele - o escolhido por mim - e eu jamais permiti que fossem mais esvoaçantes ou belas ou risonhas ou brilhantes e, por vezes, tenho vontade de decretar uma lei: "a nenhuma outra é permitido que me supere, nem em beleza nem em encanto, nem em talento nem em doçura, ao menos diante do meu amado - o Rei.". E então me lembro: não sou rainha má nariz-fininho-em-pé. Não se curvam, essas meninas. Mal se intimidam. Continuam dançando em suas volúpias. E véus, fantasias, levezas e líquidos.

Volto-me, então, para a última. Inimiga restante. Dela tenho a carne e o desejo. Atende por um nome de mulher. Por vezes é molequinho perdido. Termino, Julieta, com o maior dos clichês: "Espelho, espelho meu, que inimiga minha é mais forte que eu?" Mas é por pura vaidade, veja se consigo me fazer entender: se as maiores inimigas são mulheres, mais mulher que todas as outras será a inimiga-mor - a inquisidora.

Mudei de idéia, quanto a uma carta antiga: quem é fêmea é a maldade. Também a inquisição. A desrazão. A paranóia. A morte.

Despeço-me de você, inimiga-amiga. Perdôo sua falha se você mandar bem depressa uma resposta.
Até breve.

Rebeca

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

A uma Capuleto




Perdoem-me, amores, mas eu preciso dizer: andamos brigando com o impossível. Socando o ar. Urrando de ódio contra o nada. Pois me diga, minha Julieta, se não notou que, enquanto você riscava ferozmente o nome "Montecchio" de seu diário, um belo rapaz nu abandonava sua cama e partia pra bem longe do seu lado, dos seus braços e dos seus cabelos negros molhados.

Andamos brigando com as letras e gritando em silêncio. Ontem mesmo comi um punhado de terra: queria que em meu ventre brotassem rosas azuis. Mas a vida não é feita de pequenos encantos literários. De breguices insanas que desaguam de minha boca: "amor meu, coisinha do meu coração, furor de meus dias, vem fazer a vida ser mais bela." A vida é mais bruta e dura. E, se aquele homem de meus sonhos raramente entende o que eu digo, é que ando mais tentando alcançar as palavras - na minha vaidade de conhecer todos os sinônimos do mundo - do que expressar os instantes. O instante não diz "eu te amo", porque seria por demais piegas. Como eu disse, é tudo sempre bruto e duro. O instante olha, alcança a mão, acaricia as linhas da palma e brinca de ler o futuro. E sempre erra. E o instante é incapaz de prometer. Daí que buscamos promessas nas palavras. Pra-sempre. Por-toda-a-vida. Amor-meu. Encanto-de-fim-de-tarde. Elas prometem que todas as coisas podem, um dia, vir a existir. Ou que agora já existem, da forma como acreditamos. Permitam-me que eu seja didática: amores, as palavras são tão-somente a forma como inventamos o mundo.

Mas, não, não tentem arranhá-las, matá-las, riscá-las: o mal maior já foi feito bem antes, bem cedo. São formas-donas. Donas de nós. Bem cedo Montecchio se chamou Montecchio e o jeito agora é fazer amor com o nome-homem inimigo - achando graça no proibido. Montecchio é mais gostoso porque se chama Montecchio. Fosse um simples Romeu Qualquer - um Silva, Moreira ou Vinoli - , não haveria porque trancar a porta do quarto, fazer de tudo pro papai não ver e muito menos pedir pra ama de leite proteção de anjo da guarda.

Ah, esses nomes. Acaso ferí-los com ferro poderá, de fato, matá-los? Já existem, flutuam no infinito, e não há morte para o que nunca viveu. Quem vive somos nós, feitos de carne e carbono - e um pouquinho de alma. Por isso eu apenas brinco com eles, já submissa. Montecchio, bicicleta, coração. Casa, orgasmo, coragem. Vício, virtude, Deus. Facilidade, vicissitude, razão. Lançamento, atitude, ilusão. Demônio, alturas, vertigem, sonho. Grito.

Meu nome hoje é Grito. Mas Rebeca é sempre coisa rara. Minha razão de querer me fazer todas as outras - e todos os outros - do mundo. E depois ter pra onde voltar. Um corpo com nome de mulher.

Baseado em uma perversão:

Ultimamente, o que tem sido o meu consolo é a aparente rotação do mundo e a esperança de que ele insiste lentamente nisso. Mas mesmo sabendo que nada dura além do que precisa ser, sinto com este corpo que qualquer mudança é com muito custo. E às vezes não sei esperar a demora de uma mudança, ou simplesmente me recuso. Então apoio as mãos bem abertas na parede e exerço pressões fazendo força com os pés para ajudar o mundo a girar um pouco mais depressa.

E que mesmo sendo muito jovem, tenho todo tempo do mundo. Mas o tempo é petulante a ponto de passar mais rápido do que o mundo consegue girar. Isso faz a gente não aparentar a idade que tem. Mas e se esta for realmente a idade que se tem e o mundo é que por piedade resolve girar devagar?

A pior coisa não é sofrer a impaciência da espera de uma demora, mas ter demorado demais em uma delas. Talvez essa seja a piedade do mundo me dando a chance de não me obrigar à imprudência de esperar demais. A sensação é a de ter a vida passando pela janela.

e Observando: Foi assim que me dei conta de um novo vizinho que, segurando um livro, vem recostar-se ao pé do tronco largo de uma mangueira velha todo o fim de tarde. Acho que gostariam de ver o que vi meus amores. É peculiar a forma como lê o livro. Ou como nos engana. Com a cara enterrada nas páginas amareladas, o vizinho apóia o livro nas pernas dobradas e na parte inferior do abdômen, deixando as mãos livres de qualquer peso. E assim, com os lábios semi-cerrados mantêm os olhos serenos fixos num ponto da folha e acaricia fogoso as bordas das páginas que se desprendem do bolo. Isso tudo aparentemente distante, com respiração um pouco contida e rosto ligeiramente avermelhado. Olhando mais de perto nota-se o quanto seus dedos já foram molestados pelo fio das páginas – estão com as pontas literalmente-fodidas. Fim

Uso a palavra espera porque preciso mesmo de uma brutalidade. É quando de fato sinto que algo, enfim, mudou. Quando sou arrancado violentamente de mim mesmo e do mundo, ou quando não consigo simultaneamente caber nos dois, e então sou obrigado a me fazer de novo. Estabanado e sem habilidades de qualquer espécie. É por isso que por vezes espero além da conta – é porque quero alguém que me traga respostas, que me dê o que fazer ou que me leve para longe, onde tudo isso que se seguiu até agora virou tudo mentira. Não tenho coragem.

Talvez um lugar onde perder o sobrenome é também perder o mundo seja suficiente – mas agora já me dei conta de que estou num lugar desses, e eu é quem insisto no nome. Polissemia. Sempre gostei de brincar com isso, de ler os textos ao contrário. De achar palavras dentro de palavras. Assim, nunca fui de entender bem, acho que sempre criei um entendimento para mim. Um entendimento secreto do mundo.

Não escrevo essas cartas lamentando ou esperando algum tipo de iluminação – esse alguém que vem me trazer respostas ou me levar do mundo. Permita-me o roubo Rebeca, mas é também porque preciso. Penso à maneira de um escritor. Às vezes tenho que me imaginar escrevendo o pensamento para conseguir pensar efetivamente. Escrever é o modo que tenho de achar a concretude dos sonhos. Um nada de onde conseguimos tirar um mundo de coisas. (Talvez, escrever possa ser justamente a minha coragem. Escrever é o modo pelo qual intensifico essa minha perturbação ao ponto da brutalidade de que preciso para mudar. Enfim, obrigado a passar. Uma escrita corajosa). Mas já escrevi demais sobre isso. A diante.

Polissemia não é liberdade. Foi o que aprendi nesses anos de entendimento confuso. E que sinônimos são as coisas mais desprezíveis para um texto. Uma espécie de enriquecimento estético que pode devastar o sentido que custosamente vem à tona. Odeio quem perversamente troca alhos por bugalhos.

E mesmo não livre, a polissemia permite alguma brincadeira. É com ela que entalho assimetrias tão harmoniosas que parecem simétricas. Só que ainda me sinto compelido a dizer coisas. Compelido talvez não seja a palavra exatamente pelo que me obriga a dizer. É isso, vou trocar compelido por obrigado. Às vezes sinto que a polissemia me permite uma mobilidade maior, mas que também me desobriga da mudançaobilidade maior - uma peido talvez – uma gama de rostos para espalhar e fingir que finjo que finjo que não sei.

Sempre fui uma pessoa muito ansiosa. Anseio pelo momento de sair exuberante e me perder…, mas freqüentemente fico só na ânsia. É quando recorro à polissemia – quando me recuso a comer.

Sem mais delongas por hoje.

Polissemicamente,

D. L.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Breve

Meus amores,

Sabem o que decorei, numa tentativa de drama frente ao espelho, a espera de uma lágrima real? Isso, que feito Julieta repeti:

“Meu inimigo é apenas o teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não fosses. Que é Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença ao corpo. Sê outro nome. Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume. Assim Romeu, se não tivesse o nome de Romeu, conservara a tão preciosa perfeição que dele é sem esse título. Romeu, risca teu nome, e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo, fica comigo inteira.”

Por isso, ausento-me, tenho me ocupado de riscar palavras como Romeu deveria ter feito com seu nome, já que não fez , eu faço.

Tenho acabado com as palavras com uma raiva intensa. Perdoem-me.

A vocês – meus verbos sem tempo que nunca secam – todas minhas palavras ainda intactas,

Julieta.

Fragmento #3

Meus amores pequenos,

Isso é também morte de atrizes e escritoras. Eu que coleciono momentos de morte não estou conseguindo viver agora. Não consigo mais achar o peso deste sonho, seu ponto de concretude para que possa creditar. De que me adianta a leveza dos sonhos?, eu que vou me fazendo de pesadelos.

À escritora, é como se arrancassem seu ventre de papel em uma operação assistida por uma classe inteira. E então, lançasse aquele olhar gélido ao corpo dissecado deixando explícita a arrogância de um: invente-se!! Ande! Queremos ver agora, sem substrato algum.

À comediante, é como se atassem todos os seus membros bem rentes ao corpo pequeno. Pendurassem nela sacos pesados de areia e vendassem seus olhos, entregando em suas mãos um papel dramático ainda nem decorado que deve, contudo, ser vivido com leveza e graça.

Sei que prometi voltar apenas durante a noite, mas não pude resistir à intenção.

A sensação de que não estou conseguindo. Este é o gozo mais rígido que já precisei ter.

Entendam-me bem meus amores, não sou ator nem escritor. Apareço em curtíssimos instantes de alegria em lugares diferentes: sou o gozador.

Acho que tenho que pedir licença – tarde demais, para a minha desordem. Mas é que o instante é todo assim, coisa louca que vai puxando a gente. É um punho só para fotografar em palavras o que vai ganhando existência em mim. Já tentei deixar o punho livre e solto, tentar escrever de uma vez só e psicografar o que vai ganhando consistência. Fui acometido por uma tal velocidade que nem mesmo reticências aqui cabem (Reticente não é o termo). De tal forma que o que se seguiu foi um enorme buraco na folha que não vou reproduzir aqui porque já estou me debatendo demais.

E ainda sinto que tudo isso não basta. Como se não bastasse minha desordem tosca. Meu corpo todo é palco de batalhas. Nele cortam corpo afora Führers portugueses e franceses e uma mão de ferro inglesa. Todos eles generais, nominais e substantivos. Nada contra substâncias: ao tentar filmar o instante em palavras – quando se seguiu todo aquele rombo enorme – foi por um triz que não passei de líquido para vapor. Tenho medo de ser gaseificado. E é também porque sou bom filho que preciso ceder variavelmente a artigos definidos, pronomes, tempos – o caralho a quatro.

Hoje encontrei com um dos grandes. Fui atormentado até chegar ao ponto de precisar me desenrolar aqui. E pela primeira vez cabe reticências, porque há segredos que me recuso a contar até mesmo aqui. Mas não se preocupem, o que escrevo aqui é bobagem minha, é coisa de ninguém. E isso é minha pequena arma, meu puro dengo.

Vou parar novamente. É que agora preciso de um pouco mais de coragem para escrever as palavras que achei. Talvez volte, mas não esperem por mim.

Em uma briga de pronomes...

D. L.

Fragmento #2

Achei.

E sinto que isso vai me matar. Sinto que se entrar nisso que me toma agora estarei morrendo aquela morte pesada (aquela que transformam em leve demais): a que vai ficando rarefeito em mim aquilo que faz de uma vida uma sucessão de mortes instantâneas.

O meu corpo todo sem contorno está gelado agora, Rebeca, e à espera. Espera que você espalme as mãos, escolha dois dedos e passeie por ele traçando desenhos em minha superfície líquida. Preciso dessa sua compaixão, me ajude a ganhar agora um traço efêmero que seja nessa minha consistência aquosa.

E o que me incomoda sempre é que cá estou vomitando orações gigantescas, mas que com todo esforço não consigo emitir som algum. Não grito Rebeca, T.H. ou Aleluia porque sei que não vão me escutar. E bem aqui, pertinho da ponta do lápis, há um mundo inteiro de acordes que escuto pelas pontas dos dedos vibrando na madeira.

Isso me enche de uma tranqüilidade vestida pelo avesso. Nesse mundo vasto haver muito grafite e tinta faz ecoar estrondos gráficos. O que escrevo aqui dá choques. E isso não é um desperdício de música.

Mas não posso mais continuar agora. Preciso digerir o que rabisquei até agora para juntar com o que se segue. Volto pela noite.

Beijos

D.L.

Fragmento #1

E se eu for, sempre terá notícias minhas. Mas não se assuste querida. Atingi o entusiasmo, uma exaltação em marcha ré… Como em um daqueles momentos em que somos invadidos por uma alegria clandestina – essa filha de puta estrangeira (risos)! A alegria me come pelas bordas, é sempre por lá que começa...

Não me estranhe hoje, esparramei-me todo como se alguém retirasse o fio que me recorta. Estou escorrendo por todos os cantos. Seguindo as junções dos azulejos, indo e indo até bater no rodapé da folha.

Ah! Como estou grande hoje, é carnaval! Só não me ofereço para acompanhar-te à praia porque isso atrapalharia sermos presa-fácil. Por pura cumplicidade vou ser presa-fácil em outro lugar.

E é também porque adoro. Tive uma visão maravilhosa de ti hoje, daqui do canto escuro. Acompanhei Rebeca disparando da varanda modesta e correndo em ponto de bala até o jardim. Comendo punhados de terra fresca. Furiosa e ávida. E eu aqui todo encantado. Como se deliciava com as minhocas se contorcendo entre os dentes nervosos e os caracóis escapulindo de seus dedos finos.

Às vezes sinto vontade de chafurdar a terra, mas não tenho a coragem de disparar como tu. Atolaria a cara na lama num outro sentido. É que me irrito profundamente comigo. É que ando me culpando muito. E que falar apenas não me basta. Preciso me desenrolar em uma dança de mãos e braços para perseguir um pensamento fugitivo – que se esvai a cada gesto interrompido.

E eu sempre me recuso em conter-me. Em ficar mais duro do que já estou. Sinto-me tão capturado dentro de um espelho que por vezes sou a coisa própria. Sou o próprio espelho que é um vazio-cheio-cristalizado. É o que se alcança quando se está condenado a ser o que só eu seria – essa é a coisa conseguida. E isso também me corta peito afora. Um mundo que não cabe braço e mão – tudo é estátua de Milo.

Aí o que me salva são vocês, que vêm galopantes. E essa escrita alegre. A escrita é a minha ação. Mas onde quero chegar com isso? Preciso chegar a algum lugar…mas no momento perdi o que me interessava. ficou rarefeito.

Volto a escrever depois.

Do seu

D. L.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008



Mas não agora. Do que é que você se despede eu nem sei bem, mas não se vá agora. É Carnaval e noite escura e à noite - sozinha na praia - sempre há um homem perseguidor. Fantasio-me agora de Chapeuzinho Vermelho. Ou de Lolita-andando-a-passos-lentos: pra ser pega.

Não, não vá agora. Assista a isso, por favor. Eu não faço meus desatinos sem platéia, e você é uma platéia adorável, meu Dorian morto de amor.

É um vento frio. E eu peço, imploro, exijo que sintam o calor-líquido vertendo aqui, bem aqui. Nada mais belo para uma noite fria do que uma mulher - bela ou não - pronta e inteira para o amor. E assim me fantasio, Dorian. Como Odalisca em chamas. Conhecedora de incensos, essências e massagens nos ombros. Mas a luz é fraca. No instante seguinte, o escuro me prega uma peça: à meia-luz, sou apenas um molequinho que solta pipas. Um coelhinho escondido na toca. Um passarinho azul. Tudo na imaginação lúdica de uma platéia enternecida: "coisinha linda feita pra fazer sorrir"!

Rebeca. Rebeca. Rebeca. Repito meu nome e entendo que isso é um nome de mulher. Chamo meu nome a todo instante, busco-o no escuro perseguido pelo homem de más intenções ou num perfume maldito de final de dia, encontro-o em papeizinhos com cheiro de jasmim e num amor violento que dói pra valer à pena.

Entenda, querido: peço que fique, porque você, sim, conhece meu nome. Grite "Rebeca" ao molequinho das pipas ou ao coelhinho da toca e, de repente, o mundo inteiro ganhará ondas de mar, amor e gozo. E, de repente, eu vou nascer. Grite "Mulher" a qualquer forma viva que encontrar no mundo, e o calor-líquido-gozo-vivo fará brotar o universo em flor. Não lhe peço perdão pela loucura de hoje: no Carnaval eu posso dizer que todo nascimento é fêmea.

*
*
*

Rebeca

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

De quem não tem o que falar:

Bem,

Que vontade de encher esta página com reticências. Mas reticente não é bem o termo. Eu que sou mágico não consigo deixar omisso 1 metro e 95 de carne-viva.

Carne-viva-apaixonada é que nem erva daninha, quanto menor o tempo, maior é a intensidade com que se espalha.

Sabe qual é o problema das palavras, meu amor? É que nunca se consegue chegar totalmente com elas. Sempre termino insatisfeito quando tenho que recorrer à língua. Ela é intrinsecamente pesada e é por puro dengo que faço dela algo leve. Termino porque sinto que preciso parar, mas nunca porque alcancei o termo. Aquele ponto todo nervo do real.

Não sei se você consegue me entender. Até agora nem parece ter sido o caso. Mas logo darei algo para que você possa juntar.

A minha verdadeira língua, a língua primordial, é ainda intocada e toda informe. E de forma alguma há aqui hesitação. Tem muito corpo pairando o abismo que por pura aprendizagem não vira corpo caído entre espelhos.

E eu sei! Não vou me dar nem ao trabalho de te deixar explicar, simplesmente sei – é tecnologia de ponta: Todo esse corpo-carne-viva-que-paira-e-aprende. Sou de gostar assim: a cada passo que dou, gosto e me arrependo. Há em mim sempre uma ingenuidade medrosa. Gosto como criança gosta de doces. Inteiro.

Mas aprendizagem só consegue ser se for riscando. É já de Maternal que aprendi a ligar pontos e completar figuras com riscos. Aprendi que não poderia ter um nome se não fosse também riscando – eis-me!

Vou dar um tempo agora.

Voltei.

o que me acontece agora não dói. Felicidade dói. Alegria não. Mas o que capto agora não é alegria. É algo como o que senti ontem quando terminava de ler um livro – talvez agora eu escreva algo que você possa juntar. Sabe como se sente quando algo termina abruptamente? Deve ser o mesmo que se sente quando se acaba de morrer. “É como se a vida dissesse o seguinte: e simplesmente não houvesse o seguinte. Só os dois pontos à espera.”

Mas só de birra não vou ficar triste. Vivo de passagem. E ainda fazendo pirraça. E sempre fui de me curar muito rápido. O que de forma alguma deixa as coisas mais leves. Elas têm o mesmo peso que teriam se eu levasse dias moribundo em uma cama.

E assim não há o que lamentar. Não gosto de quem faz da insuficiência analogia do lamento. Ou de quem faz da morte algo mais leve do que precisa ser. É que nunca gostei de sinônimos.

Bjos

Eis, afinal e enfim, o que não quero mais!

D.L. (Di)