quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Escrever - A/C de Rebeca

Rebeca

Voici notre lettre #2!

E desta vez sem desculpas, a não ser a de desviar nossos assuntos da beleza para esses mesmos riscos pelos quais desliza os olhos agora. É que tenho um segredo tão grande que nem consigo me conter. É como se ele exigisse (a) língua ou, pior, como se escorresse pelas pontas dos dedos compondo palavras soltas onde quer me atreva a empunhar o lápis ou canetas. Desta vez não irei segredar sobre a beleza dos corpos masculinos, quero falar de corpos escritos, corpos literários. Corpos Escrituras.

Acordei hoje com uma vontade de ser lido.

Tenho um segredo tão grande que ando até mais pesado e desajeitado. Não sei nem como contar essa minha perversão, ultimamente venho cometendo compulsivamente o pecado da gula. É que descobri uma nova delícia: escrever. Na verdade foi uma descoberta muito simples aprendida absurdamente de uma forma que outra senão a da leitura. Lendo qualquer coisa: livros, cartas, fotos, conversas, gemidos, verbos, sussurros, gestos e trejeitos. Foi lendo que também deixei marcas escrituradas. Tanto em mim quanto nesses outros corpos que, neste momento, nem sei por onde andam... ou mesmo se ainda andam, é que comecei devorando-os pelos pés.

Acho lindo como as palavras se dispõem pelo papel. Uma vez, li em algum lugar que escrever é uma perversão. Bem, sobre isso, posso afirmar que é uma satisfação escrever. Gozei!!! e por isso, se estiver fértil, cuidado ao manusear estas páginas se não quiser ficar grávida. E, se não quiser mesmo, melhor até deixar esta carta de lado e retoma-la apenas quando achar que estiver pronta.

Ando me sentindo bem clariciano, é que essa delícia é também a minha quarta dimensão: a palavra. Inventei ontem que tenho necessidade delas. Hum, como pude fazer isso comigo? Criei uma dependência... que louco eu, não? Não! O que importa menos aqui são as palavras, mas os cheiros que elas fazem passar. Uma doçura de traição. Neste momento as linhas da folha exalam cheiros em resposta aos olhos deslizantes. Você sente? Eu sim. E o gosto? Todos os cheiros também têm gosto, sabemos disso com os aromas muito acentuados. A mesma pessoa que me disse que escrever é perversão, disse em outro lugar que as palavras têm sabores, que são salgadas (e isso não é pejorativo).

Neste momento fico pensando, que gostos têm a nossa remissiva de cartas? Quais perfumes fotografamos nessas páginas? Duas sérias-tolas perguntas e uma pretensão minha, já que sem elas não escreveria nada. Pelo menos nada de que gostasse (nada com gosto (com gozo)).

Bem, foi desde então que me entreguei a essa “glutonisse”. Uma gastrografia que consiste em provar as palavras e esboçar sabores quando preciso ou não. Arranjar um texto de tal forma a fazer passar um perfume. É isso o que importa: a passagem. Se nada passa, não tem gozo e o texto é frígido.

ESCREVER – PERVERSÃO – GOZO – SABORES. De um tempo pra cá venho achando meus textos muito orais. Escrever com a boca. (psicanálise que insiste em passar)

Escrever me faz tão mulherzinha (essa expressão tão sua, agora nossa). Deixe-me explicar. Compreende que estamos engendrando corpos (?), ou melhor, que me encontro agora, junto com você, em um instante tão maternal, tão grávido de cheiros (Eu não, mas o instante, do contrário isso seria uma estratégia de profundo egoísmo), que escrever é um último recurso para conferir consistência e sabor literário (corpóreo) aos aromas. Escrevo por um golpe de angústia, digo isto com toda certeza obrigado pelo desespero que me causam o meu corpo e o porvir desse corpo”[1]. Desesperadamente férteis a endereçarmo-nos corpos para fazermos o que puder com eles.

Pausa para um comentário: Corpo é uma palavra que escrevo de boca cheia. Fim do comentário.

Preciso roubar mais dois fac-símiles de livros, se me permite:

"Escrever mal, dever contudo escrever, se não se quiser abandonar-se ao desespero completo"[2]. O desespero de um corpo como palco. Aflição! Aflição! Aflição! "Não escrevi nada hoje e, tão logo deixo o livro de lado, sou imediatamente assaltado pela insegurança que, como um espírito mau, se segue a não escrever"[3]. É como se o mundo escapasse de si mesmo “por entre os dedos”.

Escrevo por uma necessidade e não por um impulso, e este será aqui o meu último golpe violento deixando qualquer clareza para a retórica, já que não escrevo para você ou por mim. É por isso [uma necessidade] que escrevo angustiado, i.e., escrevo in-tensamente – nota: favor enfatizar o prefixo!! Acho que é isso que dizem quando falam que o texto carrega intenções. Como escrever sem fazer passar as tensões de um corpo? J’écris comme un opérateur. O meu modo é escrevendo, a linguagem é para mim uma pele: “esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo”[4]. É porque ando tentando chegar onde quer que seja, correndo de lugares em lugares em uma folha de papel, que tento criar aqui aberturas, como que "estendendo" a pele para que se abram mais poros por onde possamos entrar e sair, ou ainda oferecendo a mão para que possa segurá-la. “Dá-me a tua mão…”.

E agora chega!, o que tinha que passar, foi-se...

D. L.

Ps.: Tout ceci doit être considéré comme dit par un personnage de roman.

Ps2.: Vou precisar de uma outra carta para definir melhor isso que chamei de "gastrografar".


[1] KAFKA, Franz. Diário íntimo. Rio de Janeiro, 1964.

[2] KAFKA, Franz. 1912 em uma carta – não lembro de que livro isso veio, mas creio que consiga achar na internet.

[3] Este trecho veio roubado de segunda mão do livro LIMA, L.C., Limites da voz: Kafka. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

[4] BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso – Trad. Hortência dos Santos. – Rio de Janeiro: F. Alves, 1986.

Um comentário:

taty disse...

D.L.,

[Essa não é uma carta, é sim, bilhete escrito em linhas corridas no bloquinho que fica ao lado do telefone. Mensagem escrita, arranco a folha e passo por debaixo da porta, recebeu?]
Posso contar um segredo? Essa ânsia que agora me causa arrepios, escrever, é paixão antiga coberta de pó, mas como o "esquecido" é ulceração, voltou a arder, por conta dos meus pés que sempre andam tão descalços...
Obrigada,
[T.H.]