terça-feira, 26 de fevereiro de 2008



É silêncio ainda. Só que agora é silêncio de saudade. Saudade de mim. Dê-me um tempo. Um tempo entre eu e eu. Ela e eu. Eu e ela. Nós duas. Pois vou explicar agora porque não sei ser artista: é que tenho tanto medo de me perder, que acabo evitando sair de mim. Então, evito o moleque das pipas que avança ligeiro na sola do meu pé esquerdo, finjo não enxergar a puta que sacode minhas ancas e escondo nos pulmões o grito de princesa mimada. Se eu fosse despedaçada e forte, sem medo de me perder, confessaria absurdos como a vontade louca de criar todas as leis do mundo e de ser amada por todos os Reis do mundo. Nasci mulher, querido, e, por medo de um dia passar debaixo do arco-íris e me tornar menino, decidi ser menina até a raiz dos cabelos: frágil e delicada tal e qual asa de borboleta. É que não quero que Deus -notando algum vigor em mim - resolva me arrancar os encantos de pele e curvas. E meu gozo fundo e infinito. Pela mesma razão, não sou sábia: quero jamais ter rugas.

Mas isso, meu caro Dorian, é um drama antigo e não é meu. Pergunte às feministas, às fêmeas, às damas. Nada de novo sob o sol. Sou aquilo que às mulheres foi dado pela história: uma dúvida, um quase, um fundo. Um depois. Travo pequenas guerras. Nada artísticas. Socos no ar. Não fazem encantos, graça ou sentido. Já lhe disse que não sou artista nem sei ser. Artista inventa beleza no torto. E eu quero ser bela e reta: quero seguir o que não falha. Quero ser terrivelmente bela. Quero não ter manchas, marcas, máculas. Quero nunca ser traída, jamais trair, furtar ou matar. Desejo manchar o lençol de vermelho na noite de núpcias e quero cuidar dos doentes. Não sou artista, Dorian. Fui parida num sonho feminino e desde então minha mãe e amante exige que eu seja o que seus instantes pedem. Hoje o instante dela é duro. Caminha feito dama sobre os ponteiros do relógio. E não permite que eu seja moleque, puta ou bicho. "Somos o que somos" - ela diz, e o instante completa, submisso: "E não há o que se possa fazer."

Minha mãe e amante adoeceu. Amanhã acordarei e ela estará tirando poeira do vidro da mesa de centro da sala. E eu acho lindo. Eu acho o tédio sempre, sempre lindo, Dorian. Não sinta pena: não sei ser artista porque amo ser escrava. E hoje ela exige de mim o silêncio, o frio e uma vassoura que alcance as teias de aranha no teto.

Aranha faz um trabalho tão perfeito, não? Deve ter mãos de fada... Ou coração de escrava...

Com carinho,

Sua e de quem quiser,

Rebeca

3 comentários:

Felipe disse...

matando saudades!

Anônimo disse...

Bravo!

Cora disse...

Eu me mato pra ser escrava mas ninguém me acorrenta!
Mas se vc disser àlguém que um dia eu disse isso, eu nego, e culpo meu "eu lírico"!